18 de junho de 2009

Azougue 10 Anos ENTREVISTA Vicente Franz Cecim












Azougue: O que é Andara?


VFC: O que é Andara? Posso responder como Flaubert respondeu: Madame Bovary c’est moi. Andara sou eu, me vivendo em sonhos de Escritura de mim mesmo.


Azougue: Isso é Andara em relação a você. E o que é Andara em relação à Literatura?


VFC: Em relação à Literatura, Andara não é mais Literatura, é Escritura e desvio onto-introspectivo, em relação à Literatura.


Azougue: E o que é isso? Apresentando “Biografia de uma Árvore” de Fabrício Carpinejar, você falou em “a Literatura praticada como ontologia, a Palavra praticada como vida.” É isso que tenta em Andara?


VFC: Sim. Andara? Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres.Azougue: E esses vislumbres em Andara permitem ver o que?


VFC: O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda não haviam sido deformados como oposições que se excluem mutuamente.


Azougue: Esse ponto seria aquele que Breton mencionou no “Manifesto Surrealista”, ponto em que “cessam todas as contradições”?


VFC: Mas, antes, Plotino já havia falado isso. Está lá, na sua famosa Circunferência que é Infinita porque seu centro está em toda parte. E não só Plotino. É uma ancestral percepção iniciática.Azougue: Andara então se inscreve nessa Tradição?


VFC: Digamos que Andara se opõe à Matriz dos dualismos. De todos os dualismos. Ela é Demanda do Um através do Vários.


Azougue: Mas se vale de opostos. A ave, a serpente. Está nos seus livros de Andara.


VFC: Sim. Mas se se vale do permanente embate entre as Luzes e as Trevas, entre a Asa e a Serpente, desde o primeiro livro visível escrito através de mim em 1979, justamente chamado ‘A asa e a serpente’, até o mais recente livro de Andara, o ainda inédito ‘O escuro da semente’, que está terminando de se escrever, agora em 2001, através de mim, é só para negar, não o Imanente pelo Transcendente, nem o contrário, mas as deformações maniqueístas que a Civilização foi nos legando e impondo a nós. Andara é um ir sem ir, em demanda do Ponto Vélico onde Visível e Invisível se engendram mutuamente. Aquele Ponto Vélico do qual uma vez Victor Hugo disse que, numa embarcação, é “o lugar de convergência, ponto de intersecção misterioso até para o construtor da embarcação, onde se somam as forças dispersas em todo o velame desfraldado.”


Azougue: Andara então busca esse ponto de convergência misterioso. Misterioso até para você, o construtor do barco de Andara?


VFC: Sim. Misterioso sobretudo para mim, que sou o que menos sei de Andara. Mero Instrumento que ela usa para se fazer existir, como o Castelo de Kubla Khan usou Kubla Khan em sonhos para tentar uma primeira vez existir, mas ficou reduzido a ruínas, e depois tentou existir uma segunda vez sob a forma de um poema do Castelo de Kubla Khan usando Coleridge, mas o poema ficou inacabado, ruína verbal, porque Coleridge interrompeu a transcrição para o papel do poema do Castelo sonhado não em pedras, mas desta vez em Palavras, para ir atender seu alfaiate que batia na porta e quando voltou, havia esquecido todo o resto do poema. É no que dá suspender por um instante a Vigília Onírica e permitir que penetre a Vigília Prosaica dos cotidianos. Borges, que gostava de contar essa história exemplar, com humor metafísico perguntava: “Qual será a terceira forma que isso que tenta existir assumirá?” Talvez essa terceira forma seja Andara. Pelo menos isso eu sei de Andara: que ela me usa para se existir.


Azougue: Mas você também não está buscando, através da invenção de Andara, respostas para as eternas indagações humanas? É onde busca, onde Andara busca em você, onde você busca em Andara?


VFC: Andara busca Ali, Lá, Aqui, seja onde for. E vai me levando com ela. Andara quer atingir aquele lugar do qual Eckhart diz: “Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes.” Está lá, transcrito em “Os animais da terra”, o segundo livro visível de Andara, de 1980. É uma busca antiga, como se vê. Um vôo bem antigo em mim, através de mim.


Azougue: Mas em Andara você a certa altura diz: “Embora a ave mais bela seja aquela que se recusa a voar.” Cadê o vôo, para onde voou?


VFC: Para isso, para se dar a essa Busca, Andara tinha que ser, e nisso se tornou, Lugar de Nenhum Lugar, o que equivalesse a dizer Lugar de Todos os Lugares.


Azougue: Você é filho nativo da Amazônia, que você costuma chamar de “A Floresta Sagrada”. Um dia até enviou um e-mail dizendo que a Amazônia era para você o que a Floresta Negra foi para Heidegger, lembra?


VFC: Andara é Geografia Verbal, dialogando com a Geografia Física da Amazônia, que, por ser Lugar de Natureza, é Lugar do Sagrado em epifania. Se não existisse a Amazônia e não se desse a circunstância fatal de eu ter nascido lá, talvez não houvesse Andara. Certamente, não: não haveria Andara. Então, Andara começou se nutrindo da Amazônia. Da Realidade da Amazônia. Mas da Realidade Onírica da Amazônia. A Amazônia é um tecido infindável de lendas, fábulas. Lá, aqui, parece não haver fronteiras muito nítidas demarcando onde termina a Realidade e começa o Sonho, e vice-versa. Em Andara também é assim. Mas não falo da Amazônia que aparece, mimetizada, na Literatura de Cultura, a erudita, a que se faz escrevendo palavras: falo da literatura Oral da região. Dessas raízes é que foi nascendo a não-árvore de Andara. Árvore que se iniciou como Árvore de Palavras, mas aos poucos foi buscando se tornar o que hoje é: uma não-Árvore de Palavras. Árvore Invisível. Esse tipo de Árvore, ninguém pode incendiar e reduzir a cinzas com fazem com as árvores da Amazônia.


Azougue: Você diz, então, que em relação à sua Amazônia, Andara é região verbal. Uma outra região.


VFC: Na Invenção de Andara, se retoma o sentido do Verbo como Sopro criador. Novamente o Demiurgo se faz presente. Mas o Demiurgo, neste caso, é só um homem: eu: coisa enquanto Imanente, efêmera. O que não impede que haja um Ímã em mim, pulsando pelo Transcendente. Não posso soprar o barro e criar vida, mas posso soprar as Palavras de dentro de mim e criar um Mundo Verbal. Nesse sopro, não digo: Faça-se a Luz. Apenas oro por ela. Nesse mundo, de Andara, não sopro: Desfaçam-se as Trevas. Apenas rogo a elas, como Caminho de segredos por algum motivo necessário, que, se desvelando, vão me deixando passar. Comigo vai todo o Cortejo de Neblinas de Andara.


Azougue: Em um dos seus livros visíveis você diz: “Personagem, coisa que, aliás, não existe e aqui está a noção de fantasma no lugar de personagem.” Quem lhe acompanha então nesse cortejo de Andara?


VFC: Pois em Andara já não há personagens, coisas, acontecimentos: há seres Neblinas, coisas Neblinas, sombras de acontecimentos imersos em rarefeitas Neblinas.


Azougue: Andara vem do verbo andar?


VFC: Vêm? Será? Eu mesmo às vezes me pergunto isso: Andara vem do verbo Andar? Não sei, só sei que também quanto a isso nada sei. São sempre obscuras e encerradas em si as coisas de Andara. “Vida ama ocultar-se”, dizia Heráclito. Eu, como um outro Obscuro, um obscuro mais selvagem, também me surpreendo freqüentemente me dizendo, a cada novo livro visível que estou escrevendo de Andara: Andara ama ocultar-se. E rio comigo mesmo, mas às vezes me intimida, me dá medo. É uma convivência, essa minha com Andara, com muitas Alegrias que eu não encontraria em nenhum outro lugar, mas também muito cheia de espessuras e súbitas fendas de entrevistas revelações. “Na obscuridade o ouro reluz”, dizia Pound. E Maupassant, tão belo e hoje tão injustamente esquecido, falava da presença insidiosa e temível de um Outro, oculto, por trás dele quando escrevia. Mas jovem, eu muitas vezes também percebi esse ‘Outro', lendo por trás dos meus ombros o que eu escrevia. Se era à noite, sozinho na madrugada, eu parava de escrever e ia dormir abraçado à mulher quem fosse na ocasião, assustado. Foram os primórdios de uma pré-Andara, pequeno contos que eu escrevia, ensaiando o Passo para penetrar em Andara e nela me perder, me fundir para sempre, como hoje estou.


Azougue: Mas você ainda não respondeu. Andara vem do verbo andar? Ou ‘ela' também lhe proíbe de dizer isso? É um segredo entre vocês dois: criador e criatura?


VFC: Pois é. Mas quem é o Criador, quem é a Criatura? Essa é uma outra das raras coisas que eu sei de Andara: Ela é o Criador, eu sou a Criatura. Em nosso caso, toda a história da Literatura se inverte. No livro “Silencioso como o Paraíso”, que tem duas entradas, duas capas, duas frentes, dois inícios e dois fins, mas nenhuma saída, eu sussurrei isso para o leitor, quase pelas costas de Andara. Numa das Entradas do livro, coloquei uma frase de Ângelus Silesius: “A criatura é o seu gosto de brincar.” E na outra Entrada outra frase de Ângelus Silesius: “À divindade agrada o jogo de criar.” Fiz como Dante, que pôs aquele aviso terrível na porta do Inferno: “Ó vós que entrais, deixai toda a Esperança.” Mas em Andara não há nada a temer: exceto o Temor e o Tremor, citando o título do livro de Kierkgaard, de nos vermos a nós mesmos e à Vida que, em seu Pudor, porque a Vida é uma coisa feminina e casta e cheia de Pudor, sob as Aparências, sob sua Epiderme dissimulada, se oculta de nós.


Azougue: Sim, sim. Mas você ainda não disse se o nome Andara vem do verbo andar. Você está proibido, por Andara, também de comer do Fruto Proibido?


VFC: Ah, me lembrou “O Eterno Adão”. Vocês conhecem? Uma novela póstuma espantosa de um outro e oculto Júlio Verne, que ficou velada pelo êxito das “20 mil léguas submarinas”, uma obra prima extraordinária.A família, depois da morte dele, escondeu do mundo. Mas “O Eterno Adão” é uma outra coisa, mais secreta, como aquele “O Castelo dos Cárpatos”, que ele ainda publicou em vida. Atroz poesia, como o “Nosferatus” de Murnau.


Azougue: Bem, você não pode responder. Nós entendemos isso. Andara é o Criador e você apenas a Criatura, e o Criador lhe proíbe de responder. Mudemos de assunto, então. Tudo bem assim?


VFC: Pois é. Se Andara vem de Andar, do verbo andar. Posso tentar responder isso. Vejamos, por onde começar? Pelo menos não pensei nisso quando emergiu em mim sua Geografia Verbal e foi tomando corpo. Mas agora, de tanto me perguntarem, passei eu mesmo a me fazer a pergunta: Andara provém do verbo Andar? Possa ser, acho que sim. Afinal, é Viagem, não é?: a ‘Viagem a Andara’. Peregrinação, Lugar de peregrinações através dos livros visíveis que escrevo de Andara. Mas também sendo o não-livro, o ‘Livro Invisível’ que não escrevo, que vai se formando como Livro Neblina a partir dos livros escritos e que só pode ser lido pelo leitor em Imaginação. No começo de ‘Viagem a Andara, o livro invisível’ eu disse: Situação dos livros de Andara: condenados à visibilidade para que Andara, a viagem ela mesma, possa existir como pura ilusão. Então, disso nasce uma delicada Teia de Espelhos e quase insuportável Tensão: Tensão que só pudesse ser manifestada se Andara se desse em um outro tempoespaço, espaçotempo que não mais o da Literatura instalada ora no Presente, ora no Passado, ora no Futuro, mesmo quando ela, a Literatura, mescla todos esses modos de tempo numa só Espessura de Tempo. Espessuras comunicantes. Para Andara, nada disso resolvia mais: a sua exigência extrema, a exigência que me fazia e continua fazendo, desde seu início até hoje, e lá se vão já 25 anos, era a de uma Abolição de qualquer Espessura. Sob essa pressão, aonde ela me conduziu aos meus limites, junto com os deslimites dela, os deslimites em que queria se instaurar, explodi para fora e para dentro de mim num Tempo Verbal que fosse o Único em que Andara pudesse se dar, não se dando, e falar não se falando, entre o Invisível e o Visível: o Tempo da Hipótese.


Azougue: Hipótese no sentido de uma abertura total a todas as possibilidades? Mesmo as que pareçam mais improváveis?


VFC: Sim, é isso. Essa Abertura Total. Andar leva a ando, andei, andarei. Andara nunca quis nada disso, desses andares apaziguadores das palavras. Andara quer o Sonho Verbal dos sendo, fosse, estaria, haveria de, houvesse, enfim, do: Andara. Eu Andara, tu Andaras, ele Andara. Por onde andaríamos, andássemos todos quando andamos em Andara, através de Andara, através dos livros visíveis de Andara? E andando através de nós, sempre, o Livro Invisível de Andara? Através de Andara, vivo repetindo, não se irá a parte alguma. Pois o sentido da Viagem a Andara é a Viagem em si mesma. A si mesma. Através de Andara vamos, de alguma forma vamos. Sim. Ou não vamos? Nunca fomos, nunca iremos? Também parece que Sim. Mas vamos num ir sem ir, num ir ficando, e permanecemos num ficar indo, a meta esteja atrás, ora adiante. Ora meta alguma, ora todas as metas. Quais? Mas quais? A meta sem meta com meta, por isso, Andara é a Viagem ela mesma, em si. Em Andara, estejamos indo, sempre, inapelavelmente, não há remédio, através de Luzes, através de Sombras. Neblinas humanas através de Neblina de Mundo. Andara? Para tentar dizê-la de uma só vez e mais uma vez, claro que inutilmente, pois ela nunca se entrega inteiramente, Andara é, enfim: Demanda de Penumbra: Demanda do Graal dessa luz crepuscular e ao mesmo tempo dessa luz de Aurora, dessa entreluz onde já nenhum Sol exterior brilha mais ocultando a Luz ao mesmo tempo Natural e Sobrenatural que todas coisas, tudo, emite de Si, e disso já falava Paracelso, e é um Saber dos Alquimistas, se dando a perceber, se dando a conhecer em suas Identidades Veladas. Em Andara, estamos cegos para ver. Ou, talvez, fiquemos cegos por tanto ver Clarões na Noite em que tudo é Chama Oculta. Por isso eu disse no começo da nossa Entrevista: Andara já não é mais o que um dia foi a Literatura, como uma certa Tradição, se espessando em nós, nos acostumou a aceitar. Teve que ser um outro tecido mais fino de Escritura para poder se fazer desvio ontológico, introspectivo, em relação ao homem e em relação à vida inteira, a Manifesta e a Oculta. Em relação à Literatura, como prática da palavra designativa, palavra nefasta que cada vez mais se instala entre nós, Andara só sabe falar a Voz das Perguntas, muita perguntas. Mas de um certo jeito que quase abole a necessidade de respostas. As respostas já estando contidas nas perguntas, ao serem formuladas.


Azougue: Andara então, todos os livros de Andara, são uma imensa pergunta?


VFC: Sim. Andara é toda ela Escritura de Pergunta, mas que se inventa mundo, mundo verbal, não só após ter recebido as respostas, e sim no próprio ato de perguntar. De se perguntar suas respostas à Vida. A Surda que nos Ouve. Lá no começo, com Flaubert, eu disse que Andara sou eu. Ah, e o que sou eu?


Azougue: Sim, nós também gostaríamos de saber. Quem, ou o que, é você?


VFC. Eu? Eu sou um ser de espanto, um ser despanto, um serdespanto. Já disse isso antes. ‘Ó Serdespanto’, é o título do penúltimo livro visível de Andara editado em 2001 em Portugal, mas ainda inédito no Brasil. Eu sou aquele Serdespanto. Coisa aérea entre Céu e Terra, imerso em Perplexidades, as nossas Perplexidades de Existirmos em Homem. Haja, também, as Perplexidades das coisas em se existirem em Montanhas, Peixe, Centopéias, Estrelas, Galáxias e das Sombras em se existirem Sombras. Pois eu sou Serdespanto. Como tudo é. E sou também “Os animais da terra”, todos os animais da terra. Assim pelo menos me fui também desde esse segundo livro escrito de Andara, publicado em 1981. Também sou a Asa e sou a Serpente. Em Andara, sou, somos, sempre Queda e Ascensão, Ascensões e Quedas.


Azougue: Qual é a mais abrangente e a mais clara definição de Andara, se isso lhe é permitido dizer? Com todo o respeito pela sua misteriosa Andara? Podemos responder a isso e encerrar por aqui.


VFC: Queria terminar, depois de Flaubert, com Cervantes. Cervantes disse melhor do que eu próprio, por mais que sempre tente, posso dizer, o que é Andara, o que fosse, o seja Andara. E o que é, num sentido vertiginoso, de Queda para o Alto, essencialmente a Literatura. Mas para isso ela, a Literatura, teve que vir se ultrapassando em Escritura. E, no “Livro Invisível de Andara”, eu próprio me descubro usado por essas incessantes ultrapassagens, como porta-voz de um outro Advento, este, um Advento Infinito, infinitamente além, ou aquém, até mesmo da Escritura, a Escritura sendo esse espaçotempo verbal tão arduamente conquistado, aos poucos, e que se dá em plena liberdade de Invenção das Palavras e das Coisas, para ficar só nos escritores que mantiveram e mantém contato com o ato de ‘contar', como é o meu caso, em Andara, porque eu continuo contando histórias, embora sejam as histórias já quase não-histórias de Andara e contadas da maneira oscilante entre o se dizer e o não-se dizer de Andara, isto é: o texto se tornando o Espetáculo, a atração da Noite que a Penumbra Andara encena, e a história ou ainda quase-história contada, se invertendo os pólos, a sua Consciência.


Azougue: Então, apesar de toda a inovação que Andara traz para a Literatura, você ainda conta histórias?


VFC: Sim. Não há nada de negativo em contar histórias, o homem ainda está no estágio de ouvir histórias, de se contar histórias, a Amazônia e as histórias fantásticas que a minha mãe Yara Cecim, também escritora, me contava para fazer dormir, me ensinaram isso: a amar e respeitar isso, as histórias dos seres, dos homens, da vida. Eu ia adormecendo e mergulhava nessas histórias da Infância, me tornava também personagem delas. Se apagava a fronteira entre a Vigília Diurna e o Sonhar Noturno. Isso também nutriu, certamente nutriu muito Andara, quando eu ainda nem suspeitava que ela me viesse um dia, como acabou vindo. A própria Vida talvez não seja mais do que uma História que vivemos como personagens de um Autor desconhecido. Não necessariamente aquela “história cheia de Som e Fúria, contada por um idiota, e que não significa nada”, como disse Shakespeare. Isso, não. Não devemos fazer definições definitivas sobre nada. Mas no sentido em que o mesmo Shakespeare disse que “somos feito do mesmo estofo de que são feitos os sonhos”, uma percepção muito medieval. Andara, aliás, e isso eu posso dizer: é uma coisa muito medieval. Eu sou um homem medieval, de uma certa maneira. A Idade Média, sem que eu saiba porque, sempre me atraiu. Então, esses autores, precursores e consolidadores de uma Literatura de Escritura, antecipadores e consolidadores de uma compreensão sempre mais e mais libertária da Literatura como Simulacro da Viva Vivida, às vezes revelador, às vezes mais velador da vida ainda, esses escritores que foram grandes encenadores de Alegorias, Fábulas, Parábolas, mestres da Metáfora viva mais viva que a Vida Vivida, agentes iniciatórios na conscientização do Sermos o Sonho de Sermos, rompedores dos grilhões da Mimética, superadores do homo faber no fazer literário pelo homo sapiens, superadores do homo sapiens no saber literário pelo homo ludens, povoadores do Onírico, transeuntes do humano ao que já chamo de ´o Umanoh’, gente, para ficarmos só no denso Ocidente, ah, tão pouco sabemos do sutil Oriente, e no Ocidente mais recente, como: o Chrétien de Troyes do ciclo da Demanda do Graal, o Baltazar Gracián do "El Criticón", John Bunyan, Rabelais, Cervantes, Swift, o intolerado Sade, Lawrence Stern, Kleist, também os narradores Novalis de "Saïs" e Hoelderlin de "Hiperión", Lewis Carroll, os alegóricos Melville e Hawthorne, o Horace Walpolle de "O Castelo de Otranto", o Lautréamont no limite do narrativo de "Maldoror" ,Dostoiévski, claro, por suas espreitas à Alma encerrada no Corpo, e o a todos superior: o milagre Kafka, Bruno Schulz, encantador, Gyula Krúdy, tão encantador quanto ele, Proust, Céline, Musil, o diáfano taoista Hermann Hesse, Jean Giono, Witold Gombrowicz, Julien Grac, Broch, sobretudo o de "A morte de Virgílio", Malcolm Lowry, o infinito rarefeito Beckett, e o zen Salinger, estranhador de cotidianos, o humilde desconhecido maravilhoso Amos Tutuola, que só aprendeu a escrever depois de adulto, autor do perturbador “O bebedor do vinho de palmeira”, na Nigéria, e aqui também queria lembrar um escritor considerado de segunda categoria que eu, nem um pouco preocupado com os critérios de qualidade literária, porque o que busco é mais do que o mero talento, amo muito e muito me nutriu para Andara, não exatamente por sua Escritura, mas como abertura para todos os Imaginários, Stephan Wull, que fez vulgares livros delirantes de ficção científica como “La Mort Vivant”/ “A Cadeia das 7”: metáfora juvenil em mim antecipadora da Metáfora Central de Andara: a convergência, para o Um, do Vários em que se dispersou. Quem já leu Andara e por acaso Wull saberá por que falo isso. E já que chegamos a esse considerado gênero menor, mas na verdade um dos mais libertários territórios entreabertos pela Literatura como sonda cega que se atira à frente de si mesma, e o futuro me confirmará, a ficção científica: também cito o senhor Herbert Georges Wells, sobretudo o daquele período fecundo que durou uns dez anos, na transição do século XIX para o XX, quando escreveu "O homem invisível", "A máquina infernal do tempo", "Uma história dos tempos futuros”, miragens espantosas do que pudesse ser a vida, em seus des-dobramentos, assim mesmo, de desdobrar suas Dobras. E Rulfo, no México, Guimarães Rosa, no Brasil. Esses dois últimos, imensos Xamãs. Vocês notaram que eu não citei o mais esperado: Joyce. Não me explico porque, mas então cito: Joyce. Enfim, todos esses que foram gradualmente pegando o Desvio da Literatura para a Escritura, fosse através da progressiva ampliação do Imaginário em demanda de seus Deslimites, fosse através da progressiva desmontagem das cristalizações das palavras em frases mortas na Mesa de Dissecação de Lautréamont, fosse pela contaminação que introduziram com a inserção do hemisfério oriental na Literatura ocidental. Com esses contaminadores, ganhamos em Ausências, ou em Presenças apenas Pressentidas. E aí está Edmond Jabès lendo, no Livro, o Livro enquanto Vida, não é? Esses, ou quase todos eles, são precursores, consolidadores, e já ultrapassadores da própria Escritura. Mas eu falava de Andara ter estranhamente me eleito seu porta-voz de um Advento Infinito, infinitamente além, ou aquém, até mesmo da Escritura. Será que posso contar?


Azougue: Conta, conta.


VFC: Pois bem. Andara, o que ela parece mais querer, é o Advento de uma Literatura Fantasma. Fantasma como são os seres de Neblina que a percorrem. Mas ainda mais sutil que eles. Andara, os livros escritos, os livros visíveis de Andara, ainda pudessem ser lidos por quem assim quiser, ou não puder mais que isso, como Literatura Fantástica. Mas o “Livro Invisível de Andara”, aquele que não-é escrito, aquele que já é não-livro, esse: Isso, já é Literatura Fantasma. Literatura de Ausência. Está para a Literatura como os números trans-finitos de Georg Cantor, talvez eu pudesse comparar, que se iniciam ali, seja Onde isso for, onde os números finitos se acabam. Literatura Fantasma é Literatura de Ausência de Literatura. De Ausência até mesmo da Presença Rarefeita da Escritura, por mais rarefeita que ela seja. Está num além em nós. Nietzsche perguntando pela voz de Zaratustra: “O homem é coisa ultrapassável, o que fizeste para ultrapassar o homem, o que fizeste para atingir o Além do Homem?” Pois ele nunca falou em Super-Homem, isso foi manipulação do Nazismo: ‘über mensh’, ele disse, e isso é dizer: Além do Homem. Mas essa é uma visão ocidental, a visão ocidental de Nietzsche. Andara se desampara é no Tao. Andara quisesse fosse as Outras três partes do discurso que se mantém secretas, não são postas em movimento, mencionadas pelo Hino do Rig Veda, que diz que só conhecemos a quarta, que é a língua dos homens. Andara não busca nada assim, como neste trecho de Nietzsche, com um sentido único de Ida: Andara busca, no homem, tanto o ‘ umanoh’ quanto o ‘umano’, tanto o além quanto o aquém do homem. Mas eu queria terminar com Cervantes, depois de termos iniciarmos com Flaubert. Andara sou eu. De uma certa forma, sim. Mas há uma definição melhor de Andara por Cervantes. Está lá, na abertura daquele seu belo, sobrenaturalmente Belo, “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda”, obra que comovidamente ele terminou em seu leito de morte, morrendo, embora em vez de Morte ou prefira a palavra Metamorfose, e escrevendo a última página e se despedindo do Leitor e informando que estava terminando naquele ponto o livro porque o Livro da sua vida estava, naquele exato momento, também fechando as suas páginas visíveis. Aquela Voz é Andara.Azougue: Qual voz?VFC: “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda” começam com uma voz gritando do fundo da terra, se lançando para superfície da terra e para o alto e para a luz, lá encima, lá fora da Escuridão em que se encontra aquele que depois viremos a saber que era Persiles encerrado numa Masmorra no subsolo. Mas no início, só o que sabemos é que é uma Voz e, depois, ficamos sabendo que é voz humana. A Literatura é essa Voz que se lança do Escuro. Essa Voz que busca ascender da Escuridão é a Literatura buscando ascender para o claro-escuro da Escritura. É a Voz da Escritura querendo ascender para o Além do claro-escuro da Escritura. É também a vozinha débil dos livros visíveis de Escritura de Andara já querendo é o AlémAquém da Escritura, no Livro Invisível de Andara. Essa Voz é a Voz Não-Voz do Livro Invisível de Andara. Essa não-Voz, ela é que é a Voz não-voz essencial de Andara. E parece que a única que lhe interessa. Trans-silêncio. As páginas antes cobertas pelos Signos da Palavra buscando o em-branco da Ausência de Palavras.


Azougue: Então, Andara é isso. Essa não-Voz. Voz-Silêncio.


VFC: Sim. Mas estou tentando, ainda, salvar as Palavras da extinção total em Andara, pela Iconescritura. Superação talvez possível da Escritura, sem que seja necessário o extermínio das Palavras. É o que estou tentando agora no livro, ainda mais um livro visível, “O escuro da semente.” Devolver as Palavras à sua mais inocente Origem de Imagens. Quem sabe se possa ter nisso alguma Esperança? Enquanto isso, Andara? Andara continua sendo travessia de Penumbras. Escrita, é Diálogo com Sombras, já não-escrita é despedida das Sombras, que cada vez mais se ausentam, das Palavras.


Azougue: Paramos por aqui. Esperamos que você não tenha falado demais e dito coisas que não devia.


VFC: Eu também. Andara, ah.