12 de junho de 2009

O Texto Sagrado de Vicente Franz Cecim







Ó Serdespanto:
1a. edição, Íman, Portugal, 2001.







Ó Serdespanto:
2a. edição, Bertrand Brasil, Brasil, 2006.



Oswaldo Coimbra


Trezentos anos antes de o Brasil ser descoberto, já havia em Portugal quem produzisse textos nos quais a crítica literária dos séculos posteriores iria encontrar razões para considerá-los como fundadores da literatura daquele país – os trovadores. Depois disto, os criadores de textos, no Brasil, integrantes dos movimentos Barroco, Arcadismo e Classicismo estariam submetidos à influência daquela que sempre lhes pareceu ser a pátria-mãe da criação literária em língua portuguesa, a terra de Gil Vicente e Camões. O caráter suplementar de nossa criação textual literária, natural no período em que o Brasil foi apenas uma colônia do reino lusitano, reduziu-se à medida em que se destacaram as características originais do processo de formação cultural brasileiro.

De qualquer forma, Portugal dispõe, ainda hoje, de universidades como a de Coimbra, nas quais a língua e a literatura do país foram submetidas a estudos, por vários séculos. Além disto, Portugal mantém-se em contato permanente com a produção de poetas, escritores e críticos da França, da Itália e da Espanha, graças à proximidade física daqueles países. Uma prova da existência de diálogo intercontinental entre eles foi a carreira desenvolvida pelo ensaísta Eduardo Prado Coelho. Detentor do Grande Prêmio de Literatura Autobiográfica da Associação Portuguesa de Escritores, Prado tornou-se professor de Estudos Ibéricos, na Universidade de Sorbonne e conselheiro cultural da Embaixada de Portugal, em Paris. Lá, também presidiu o Instituto Camões. Uma outra prova da existência deste diálogo é a produção da escritora Regina Louro, composta de uma dezena de obras, inclusive dois romances, dela própria, e, de outra dezena, de traduções para o português, de textos de escritores franceses, italianos e espanhóis.

Assim, inegavelmente, Portugal dispôs de condições, com as quais o Brasil não contou, de desenvolver uma tradição de estudos de textos literários escritos em português. É esta tradição, mais do que propriamente uma superioridade de qualidade dos estudos, que parece alimentar certa arrogância dos acadêmicos portugueses, em relação a seus colegas brasileiros, notada por quem já teve a oportunidade de realizar alguma pesquisa em Portugal, neste campo.

No entanto, malgrado o longo acúmulo de tradição e a arrogância portugueses, recentemente, um brasileiro terminou se impondo como um criador de textos originalíssimos, no requintado ambiente da crítica literária portuguesa. Por ironia, um brasileiro provindo de uma região – o Norte – discriminada dentro do próprio Brasil.

Seu nome: Vicente Franz Cecim.

O livro de Cecim “Ó Serdespanto” foi considerado como a segunda obra mais importante lançada em Portugal, ao longo de todo o ano de 2001. Pode-se medir o impacto que o paraense causou em Portugal pelo tom – um tanto brusco – adotado pela escritora Regina Louro, em sua resposta à crítica publicada por Eduardo Prado Coelho, no jornal “Público”, de Lisboa.

Prado classificou o livro como “uma revelação extraordinária”. Depois, destacou: “a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir destes textos inclassificáveis, que oscilam entre uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações verbais”.

Em seguida, Prado afirmou que, através daquele livro, “o pensamento liberta-se dos seus lastros terrestres e ganha um estatuto de ave, uma leveza de princípio do mundo, uma sageza do fim dos séculos, uma inocência dos extremos”.

A presença da palavra “inclassificável” na crítica de Prado foi considerada como inaceitável por Regina Louro, igualmente entusiasmada com o livro de Cecim. Ela reagiu numa crítica, veiculada pelo mesmo jornal. Nela, disse que a obra “é um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da palavra e reinvenção do mundo”.

Mirando diretamente o texto de Prado, Regina propôs uma outra palavra para designar “Ó Serdespanto”. Com contundência, ela disse: “chamar-lhe inclassificável é, talvez, cobardia”.

E arrebatou: “Há um nome para esta espécie - rara - de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado”.

Oswaldo Coimbra é jornalista e pós-doutor em Jornalismo pela ECA/US