29 de setembro de 2008

ENTREVISTA - Vicente Franz Cecim: paixão pela literatura






Depois lançar seu novo livro 'Ó Desnutrir a Pedra' na Feira Pan-Amazônica do Livro, em 24 de setembro de 2008, o escritor paraense Vicente Franz Cecim concede entrevista ao Portal ORM para falar de Andara – a metáfora da Amazônia produzida por sua imaginação criadora - literatura fantasma, crítica e transgressões literárias. Acompanhe a entrevista desta semana do Portal, em que trazemos um pouco da vida de um escritor.

Portal ORM - Você lançou uma nova obra na Feira Pan-Amazônica do Livro. A editora é mineira, a Tessitura. Por que lançar primeiro aqui?

Vicente Franz Cecim - Porque é a minha terra. Meus livros podem até ser lançados primeiro em outros lugares, mas sempre são lançados também aqui em Belém. Na Amazônia, que eu chamo de Floresta Sagrada, que lhes dá seiva.

Portal ORM - Todos os seus livros se passam em um lugar chamado Andara, que você começou a criar em 1979, com sua primeira obra: ‘A asa e a serpente’. O que é Andara?
Vicente Cecim - Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas uma Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que simboliza toda a vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso redor, até o que não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo, os chamados ‘livros visíveis de Andara’, são sempre convites a viajar além, até o invisível.

Portal - Você reúne todos os livros que escreve sob um título geral: ‘Viagem a Andara oO livro invisível’, que diz ser um não-livro e não existir. Qual a relação dos livros individuais que você escreve e esse grande livro, que vai surgindo à medida que seus livros são criados?

Cecim - Repare que no título geral existem um ‘o’ minúsculo e um ‘O’ maiúsculo, lado a lado. Digamos que o menorzinho somos nós, homens, e as coisas visíveis, efêmeras, passageiras, e o grande é a Grande Origem Invisível de Tudo. A mesma relação é a que existe entre os livros escritos e o livro não escrito de Andara. Os livros de Andara, no seu todo, tentam refletir o Real como ele é: uma parte revelada, uma não-parte oculta. No Ocidente, um equivalente é o Uno, de Plotino, no Oriente, é o Tao, conforme dele fala Lao-Tsé. Cada vez que um leitor está lendo um dos livros revelados de Andara, mesmo sem saber, está lendo simultaneamente a obra toda, fazendo a Viagem a Andara.

Portal - Você diz que faz ‘literatura fantasma’. É essa segunda leitura que você chama de ‘literatura fantasma’?

Cecim - Sim. Uma literatura que não existe, porque não é escrita. Somente imaginável.

Portal - Quantos e quais livros você publicou ao longo de sua carreira?

Cecim - Eles estão atualmente reunidos nos volumes ‘A asa e a serpente’ (3 livros), ‘Terra da sombra e do não’ (mais 4 livros), ‘Silencioso como o Paraíso’ (outros 4), ‘Ó Serdespanto’ (2), ‘K O escuro da semente’ (1) e agora este que está sendo lançado: ‘oÓ: Desnutrir a pedra’, o décimo quinto editado.

Portal - Há quem diga que os sete primeiros livros de Andara aboliram as fronteiras entre prosa e poesia. Na sua opinião, sempre houve essa divisão entre poesia e prosa na literatura de outros escritores?

Cecim - Veja, cada escritor faz o que quer, pode ou acha que deve com a sua literatura. A divisão entre prosa e poesia foi uma convenção gradualmente imposta à literatura. A prosa se dispõe a contar, a poesia se dispõe a cantar. Cantar e contar sempre andaram juntos, por exemplo, na obra de Homero, ‘Odisséia’, ‘Ilíada’, que são tão antigas quanto a Bíblia. Essa divisão é recente, não é natural e deve ser dissolvida. Faço a minha parte: desfaço essa fronteira. Para mim tudo se dá numa dimensão só, que já nem chamo mais de literatura, chamo de escritura. A palavra solta sobre a página em branco, em absoluta liberdade. Ela canta e ela conta.

Portal - Este livro que você está lançando, ‘oÓ: Desnutrir a Pedra’, você diz que é uma iconescritura. O que significa isso?

Cecim - Quando a própria escritura foi se esgotando à medida que eu escrevia os livros de Andara, surgiram cada vez mais páginas deixadas em branco nos meus livros. Nada demais nisso: quando a gente fala – embora falemos excessivamente e ouçamos muito pouco uns aos outros – também alterna voz e silêncio. Assim, passaram a se alternar palavra à páginas brancas nos livros. Então, eu senti necessidade de me voltar para a origem das palavras. E a origem delas é a imagem. Passei a falar, também, através de ícones. E surgiu uma nova escritura feita de palavras, páginas em branco e imagens. Assim foram escritos, primeiro, ‘K O escuro da semente” – editado em Portugal em 2005, pela Ver o Verso – e depois este ‘oÓ: Desnutrir a pedra’, que agora sai no Brasil pela Tessitura.

Portal - Apesar de todas essas transgressões dos padrões literários, você ainda conta histórias em seus livros, ou tudo está voltado agora para reinvenções de linguagem?

Cecim- Desde o primeiro, sempre contei, e agora, 29 anos depois, continuo contando histórias. Aprendi a contar histórias ouvindo as que minha mãe, a escritora Yara Cecim, contava a mim e aos meus irmãos Paulo e Elizabeth, para nos fazer dormir e sonhar outros mundos, outras realidades. Ouvir histórias, contar histórias é uma necessidade humana muito profunda. Amplia nossas existências, nutre nossa imaginação, nos leva além de nossas limitações naturais.

Portal - E qual é a história de ‘Desnutrir a pedra’ – aliás, um título curioso. O que há para desnutrir numa pedra?

Cecim - Tudo se nutre de sua própria natureza, daquilo que é em si mesmo. A água se nutre da água, o fogo se nutre do fogo. O homem se nutre de sua humanidade. A pedra se nutre de sua mineralidade, digamos assim. O livro conta a história de uma pedra que, por ter uma forma que lembra a forma humana, se põe a caminho para deixar a sua existência de pedra e se tornar um ser humano.

Portal - E ela consegue?

Cecim - Bem, acontece que os livros de Andara, além de fundirem prosa e poesia, também existem para propor inquietações e questões de natureza filosófica e mística. E, para além de contar essa história com uma linguagem nova, de palavras, imagens e silêncios, neste se apresenta uma questão à consciência do leitor: Devemos buscar ser o que não somos saindo de nós mesmos, ou devemos nos tornar cada vez mais o que somos, não nos abandonando, mas nos aprofundando em nossa natureza, na forma de realidade com que o Universo nos manifestou? Muitos de nós sofremos permanentemente essa angústia de tentarmos ser o que não somos, não é verdade? Nesse sentido, muitos poderão se ver nessa pedra que anda, em Andara. O que a espera? Só lendo o livro para saber.

Portal - Você tem editado seus livros também em Portugal. Alguns já saíram lá, mas continuam inéditos no Brasil. Há o caso de ‘Ó Serdespanto’ que, embora tenha sido apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento de 2001, esperou até 2006 para ter sua edição brasileira pela Bertrand Brasil. E ‘K O escuro da semente’ já espera três anos para sair no Brasil. O que você pensa do mercado editorial brasileiro? O Brasil é um país de leitores? Dá para um escritor sobreviver da literatura?

Cecim - Portugal é Europa, gerou Pessoa, lê Kafka, Beckett, Proust com naturalidade. No Brasil até se conhece Cervantes, mas quem já leu o ‘Criticón’, de Baltazar Gracián, tão fundamental quando ‘Dom Quixote’? O leitor faz a política editorial de um povo. O leitor português determina a qualidade editorial que eles têm. O nosso, apesar de termos gerado grandes escritores, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis, Jorge de Lima, ainda é tratado como consumidor, não como leitor, e o livro como produto. O processo leva o próprio escritor a ser tratado como um produtor de materiais para consumo. As palavras dizem tudo. Para viver espiritualmente da minha literatura, eu abri mão de viver materialmente dela. Os meus livros circulam livremente de pressões de mercado e editores. Eles são instrumentos para interrogar ou celebrar a vida. É o que me interessa.

Portal - Você concorda com a regionalização da literatura? Podemos falar em literatura paraense?

Cecim - A questão não é ser literatura regional ou universal. A questão é ser essencial, ou não. Essencial para quem escreve, essencial para quem lê. O Juan Rulfo é um escritor marcadamente mexicano, Guimarães Rosa é um escritor marcadamente brasileiro, e ambos são essenciais. Quase tudo o que tem sido publicado com características de literatura mundial, universal, desde que aprendi a ler, não tem a menor importância. Então, é como dizem os místicos: - O Verbo sopra em toda parte. – Sim, mas é preciso que ele sopre através de uma alma e de uma obra de arte, para que exista realmente Literatura.

Portal - Você foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte, que também já premiou nomes como Cora Coralina e Mário Quintana, e já foi aclamado por críticos como Leo Gilson Ribeiro e Eduardo Prado Coelho. Qual a importância disso para um escritor? Você acha que a qualidade de uma obra literária depende desse reconhecimento?

Cecim - Os prêmios não são o mais importante. O que realmente importa é se ver compreendido, é ter do outro lado do livro, não um crítico – sou a favor da abolição da crítica como instituição autorizada a dar a palavra final sobre uma obra de arte – mas uma espécie de companheiro de aventuras e descobertas.
Uma relação fraterna, cúmplice, não-institucional, humana. Aquela que Maurice Blanchot mantinha com os autores que lia. Nesse sentido, pessoas como o Leo Gilson Ribeiro, em São Paulo, Eduardo Prado Coelho, lá em Portugal, ou Benedito Nunes, aqui em Belém, morando logo ali, na Travessa da Estrela, foram grandes companheiros de viagem. Sou grato a eles e a alguns outros por não ter me sentido tão só, porque a viagem a Andara é uma aventura muito solitária.

Portal - Onde os leitores brasileiros podem encontrar as obras de Vicente Franz Cecim?

Cecim - Uma parte está no Brasil, outra em Portugal. Um dia, quem sabe, a viagem a Andara se encontre consigo mesma e seja reunida em um volume. Atualmente, só se chega ao conjunto pela Internet.