10 de setembro de 2008

Surrealismo & Imaginário Amazônico - Vicente Franz Cecim

A eternidade está sujeita ao tempo, graças à imaginação. Entendida desse modo,
produz um efeito mágico: não se sabe mais se é sonho ou se é real (...) A idéia do eterno se muda em ocupação imaginária e não se pode sair dessa disposição de alma:
sou eu que sonho ou é a eternidade que está sonhando comigo?

Sören Kierkgaard/O Conceito de Angústia


Em relação aos outros seres dos quais, à medida que ele desce a escada por ele construída, cada vez menos está apto a apreciar os desejos e os sofrimentos, é somente com toda humildade que o homem pode fazer com que o pouco que sabe de si sirva para o reconhecimento do que o cerca. Para isso, o grande recurso de que dispõe é a intuição poética.(...) Só ela nos provê o fio que remete ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da Realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.

André Breton/Do Surrealismo em suas obras vivas


O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado
em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra
e ser a chuva inversa dos Céus?

Vicente Franz Cecim/O alquimista luminoso do silêncio


DIÁLOGO DE IMAGINÁRIOS

Existe um Imaginário Surrealista? E existe um Imaginário Amazônico?
A resposta é: Sim. E, ao mesmo tempo: Não.
Sim: porque, ao se manifestar no Tempo, na História, em determinada época e em determinado território de cultura, o Imaginário Humano se reveste de aspectos exteriores os mais
diversos. A ele aderem os adereços com que vai sendo ataviado. E assim ele se mostra aos nossos Olhos de Ver o Visível.
Não: porque, embora se dando em condições exteriores que o revestem, e o atualizam, cada uma a sua maneira, o Imaginário Humano deriva de Matriz Invisível, Una e sempre igual a si mesma, que o institui desde a Atemporalidade das origens formadoras da Vida Visível.
Assim: o fato de o vermos em suas manifestações diversificadas, contextualizadas, não nos impedisse, ao mesmo tempo, de pelo menos intuí-lo como pré-existente às suas manifestações dadas aos sentidos humanos.
No que nos toca mais de perto, caberia fazer a pergunta:
Existe um Surrealismo Amazônico?Existe uma Amazônia Surrealista?
Desde o lançamento do Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite no já distante ano de 1983, durante o congresso da SBPC realizado em Belém, pressupondo que tenha esse direito como escritor da Amazônia, persisto em minha própria resposta: Neste Imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.Bastará deixar que ela nos diga algo.E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os individuais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a vida. É preciso dar-se, deliberadamente, a ela. E é preciso insistir: - Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor.
Diálogo de Imaginários?
Quem sabe. Sem esquecermos a advertência: Um lance de dados jamais abolirá o Acaso.
Acaso que é sempre Presença-Ausência nas veredas obscuras da Imaginação por onde se lança o homem, europeu ou amazônico, convertido em pura espreita humana, em Demanda de Luz.
Para mim, nem rotulados de surrealistas nem de naturalistas, preferia que seguíssemos, por entre o Natural & o Sobrenatural, a senda que um dia defini para mim mesmo com esta frase: A Literatura praticada como Ontologia, a Palavra praticada como Vida.


PARA SUA REFLEXÃO:

A vida é sonho e os sonhos sonhos são/Calderón de la Barca.

Somos um sonho de Brahman: quando ele adormece e nos sonha o Universo nasce, quando desperta, todo o Universo desaparece até seu próximo sonho/Vedas.

Somos somente agregados, serem sem vida própria, em si: nossa existência decorre da Originação Dependente/Nagarjuna.

Somos a Idéia de Homem, da qual provém o manifesto homem/Platão.

Vejo todo o Universo num grão de areia/Blake.

Somos feitos do mesmo estofo de que são feitos os sonhos/Shakespeare.

Só a limitação dos nossos sentidos nos impede de perceber que vivemos num universo feérico/Novalis.

O imperador sonhou que era uma borboleta e ao acordar não sabia se era um homem que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma borboleta que estava sonhando que era um homem/Chuang-Tzu.

Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes/Eckhart.

Tudo indica que há um ponto no espírito em que cessam todas as dualidades, todas as contradições/Breton.

O discurso mede quatro partes, das quais três não são postas em movimento, pois só conhecemos a quarta, que é a linguagem dos homens/Upanishads.

Ser é ser percebido/Berkeley

Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação/Lautréamont.



O Olho das Metamorfoses/Contaminações de vFc sobre matrizes de Magritte e Da Vinci


TUDO VEM COMO SOMBRA DO UM *

Tudo vem como sombra do Um e para o Um
volta como sombra
Aqui, na breve Residência, a vida,
imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos,
as sombras estão no Vários,
e se tornam coisas
para se darem em alimento umas às outras, enquanto aqui permanecerem

podendo esse alimento ser
visível e invisível
e visíveis e invisíveis as bocas nas coisas, sempre famintas umas das outras

e também podendo ser os alimentos
bênçãos e venenos

assim como podendo ser as bocas por onde se colhe o alimento
abençoadas e venenosas,



havendo ainda os alimentos simulacros
e as bocas simuladas na colheita.

Quanto à permanência na breve Residência, a vida,
imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos,
as coisas podem optar pela Fome umas das outras, e se devorando se devolverem como sombras do Um ao Um

ou pelo Jejum das outras.

Pois há um dom que nos é dado pelo Um
para alimentar a permanência:

aliado dos jejuns, esse Dom é o da
Amizade das coisas pelas coisas.



* De K O escuro da semente vFc Viagem a Andara oO livro invisível