19 de setembro de 2008

Uma ponte entre a palavra e o silêncio Alberto Pucheu

Escrita vigorosa e inclassificável de Vicente Franz Cecim se apropria da prosa, do verso, da filosofia e do romance


Ó Serdespanto

Viagem a Andara oO Livro Invisível

Caderno Prosa & Verso, jornal O Globo, 28 de julho de 2007, página 6.

Diante do indizível, tudo o que se pode falar será sempre pouco, mas, justamente porque estamos diante dele, devemos falar, muito, para, de algum modo, redizê-­lo a cada instante, para mostrá-­lo enquanto o que, da vibrante materialidade da linguagem, se ausenta para que ela apareça em toda sua força. Escrever, então, é um gesto que, pelos ruídos da mancha negra da página, flagra o silêncio em sua fuga. Na linguagem que vemos, o rastro da que não vemos. Nos livros visíveis, os vestígios deixados pelo livro invisível. Se Andara é a Amazônia mítica criada por Vicente Franz Cecim, é porque, na encruzilhada entre o manifesto e o não-­manifesto, ela é vida. O livro se mostra como uma ponte entre a palavra e o silêncio, entre o visível e o invisível, entre o ser e o não-­ser, entre “a vida lá” e “a vida vivendo aqui”. E a literatura, como uma outra vida que insiste em tornar possível a experiência da vida como a vida é. No mito de Andara, a presença da escrita através da fábula: não é o escritor quem fala, mas as árvores, as aves, a floresta, é vida mesma quem fala ao homem para sua aprendizagem através das falas de Andara. Quando é o homem quem fala ou escreve, quando outro apelido de Andara pode ser Vicente, Franz ou Cecim, é porque, falando na seiva da linguagem, quem fala por esses apelidos já é Andara ou, como dito, vida. O livro­-floresta é o lugar que habitamos e precisamos habitar para saber da vida quem ela é e, sendo-­a, quem somos nós. Há muito, o projeto do paraense Vicente Franz Cecim é dos mais originais e ousados em nossa literatura. Se fomos obrigados a esperar primeiro a edição portuguesa de Ó Serdespanto, com o alarde maravilhado que lá causou entre as melhores cabeças pensantes, para, só então, termos o livro publicado por aqui, pior para nós, seus leitores, seus conterrâneos, que necessitamos de sua leitura como instigação ao que somos e ao que fazemos. Muitas vezes, somos lentos no que diz respeito a nós mesmos. O fato de um livro como esse, como toda sua obra anterior, não ser extremamente divulgado e valorizado entre nós ainda é fruto de um imenso desconhecimento que temos de nós mesmos e de certo provincianismo que – é bem verdade, cada vez menos – ainda resiste por aqui. Na orelha do livro, referindo-­se ao “thaumazein” grego, Benedito Nunes salienta com toda pertinência que Ó Serdespanto é um livro-­poema que tem uma origem filosófica denunciada pelo próprio título (além disso, as aves filosóficas que pousam pelas respectivas páginas são, explicitamente, Heráclito, Plotino, Novalis e Kant e, implicitamente, Heidegger e Nietzsche, dentre outros). Pelo menos desde Platão, a palavra grega para dizer espanto é a que assinala a origem da filosofia, o desde onde a filosofia nasce e que, nela, continua a existir em todo o seu percurso a cada vez que ela se presentifica. O filósofo e crítico paraense poderia ter acrescentado que, para Aristóteles, estando na origem da filosofia, essa mesma palavra está, igualmente, na origem da poesia. Na ausência de conhecimento, sem caminhos, sem saídas, perplexos diante da constante aporia que a vida nos impõe, diz Aristóteles, é através do espanto que, de certo modo, poetas e filósofos são o mesmo. Assim, Ó Serdespanto é o homem que, através do indiscernível entre o originário do filosófico e do poético (“Eu sou a origem. Eu estou Lá na origem de tudo”), faz a vida como ela é – Andara – comparecer no corpo do livro. Enquanto que, na hegemonia da história do pensamento ocidental, essas duas experiências do pensamento e da linguagem estiveram cindidas, Ó Serdespanto aposta numa junção entre elas, respondendo com exemplaridade à requisição feita por Giorgio Agamben quanto à “urgência para nossa cultura de reencontrar a unidade de sua palavra fraturada”. Para realizar da melhor maneira essa demanda, Vicente Franz Cecim faz da linguagem uma aventura e exuberância amazônicas: palavras-­valises, conceitos, personagens-conceituais, imagens, forte musicalidade, fábulas, mitos, sonhos, delírios, discussões filosóficas, palavras iniciando com maiúsculas no meio das frases, páginas em branco, a importância da diagramação, do vazio e das manchas negras das páginas... De fato, são muitos os procedimentos usados por este livro que se apropria da prosa e do verso (fazendo algo que, na maior parte do tempo, não é nem um nem outra), da filosofia, da poesia, do romance e da mística em busca da perfeição da linguagem e do pensamento, encontrando uma escrita completamente vigorosa e inclassificável.

Alberto Pucheu é escritor e professor de teoria literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro