7 de julho de 2009

Diálogos com Odradek: I Temor de ser neblina

Vicente Franz Cecim















Imagem: Giselda Leirner





Odradek. À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e parece também revestido de fios, de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns nos outros, além de emaranhados e dos mais diversos tipos e cores. Mas não é apenas um carretel, pois do centro da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vereta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé com se estivesse sobre duas pernas.




Kafka


Preocupações de um pai de família








Cantemos assim, em coro de estar na Névoa, ó tu Filho Névoa, ó eu Pai Neblina



Contigo na névoa eu vou, comigo na névoa tu vais, e nós indo vamos Neblina neblina e Névoa



ó sermos: não-Ó: ser na Neblina: Ó Serneblina



pois como aquele agora tu, em Andara, seja esse o teu



Nome: ó


Serneblina






vFc


Viagem a Andara oO livro invisível

oÓ: Desnutrir a pedra







Diálogo I: Temor de seres neblina







Vicente Franz Cecim:

- Odradek, pessoas temem o mundo do Imaginário, como temem os Sonhos.

Odradek:

- #

vFc:


- Parece que sabendo que são miragens vivas, elas, as pessoas, não suportam conviver com, se deixarem ir em sua ir-real natureza de seres neblinas. Temem o que sabem que vai lhes acontecer: um dia, surgem na vida visível, no dia seguinte podem sumir por dissolução, quando uma falha interna ou um golpe exterior atinge a conjunção dos agregados que assumem momentaneamente uma forma humana e dão a elas a ilusão de que - são. Melhor seres lúdicas. O Imaginário, os Sonhos, a Vida, todos são tecidos de Neblinas Visões e Rarefação.

Odradek:

- oO

vFc:

- Sim: oO, toda essa vida visível ao nosso redor como a vida neblina nos livros visíveis de Andara a Invisível. oO: a esfera pequena, nosso pequeno eu humano, girando girando ao redor da esfera imensa, O. Tentando retornar a Ela. Pois parece que nEla, a Duração, e na pequena o exílio no Efêmero.

Odradek:

- O

vFc:

- Mas tu, Odradek, não te interessas por esses assuntos humanos. Tu és apenas um carretel de linha com uma agulha espetada e uns fios confusamente enrolados em ti, que giras da sombra da escada da minha breve Residência, a Vida, para a quase luz da minha sala onde de dia, pela única janela, um raio d0 Sol, e nas noites, através da espessura do teto, a Luz, quando, por querê-las intensamente, nós, homens, as chamamos e elas vêm até nós. E depois retornas à Sombra sob a escada que leva ao sótão, talvez um Observatório de Penumbra de onde às vezes - se o homem é o sonho de uma sombra, como escreveu Píndaro - quem sabe se possa distinguir, longe e perto, todo o Grão de Areia do Universo.

Odradek:

- #

vFc:

- Ah, nós, humanos, por que insistimos em contar uns aos outros os nossos sonhos, se nos aborrecendo com o relato deles uns aos outros, se o meu sonho interessar só a mim e o do outro só a ele? A menos que seja um Cavalo Negro da Noite: Cheval Noir de la Nuit, como chamava Victor Hugo os Pesadelos. Então, logo olhamos por essa janela escura para dentro do que o outro nos oculta, e de si? Por isso, então, ah, inventamos a Arte, para através dela, esse Sonho dissimulado de Outra Realidade, sermos aceitos quando lançados para o próximo nossos mundos interiores, seus rumores, silêncios, Visões de olhos que vêem o que nos dias não vemos.

Odradek:

- k

vFc:

- Sim, Ele: K. Seus livros foram escritos como um despertar de um sono agitado das Espécies Ocultas dos acontecimentos.

Odradek:

- Odradek

vFc:

- Sim, sei: Ele te criou pela Imaginação, e se tornaram vocês um para o outro. Ele: K, sendo, e tu não-sendo, digo: o humano?

Odradek:

-

vFc:

- Em busca de uma Duração que não existe, como se preocupam os Pais de Família quando pensam que tu vais sobreviver a eles, Odradek.

Odradek:

- #

vFc:

- Sim: #: como um som que não se ouve de coisas se partindo, ao Longe, e é em nós mesmos: no Dentro, em nós.

Odradek:

-

vFc:

- Sim, o Silêncio que já é não sendo antes e depois de todo som voltando a não ser silenciosamente. Às vezes eu pareço ouvir algo se quebrando sob a escada, Odradek, e penso que estejas te partindo, tua madeira se rachando, a ferrugem corroendo tua agulha, os fios atados a ti se incendiando. E tua estrela, se apagando? Mas acordo no meio da noite e me dou conta de que foi só um sonho. Se foi, perdoa se te conto. Apuro o ouvido: - Nada. Apuro mais: - Nada. - Só o Silêncio Odradek.

Odradek:

-

vFc:

- Sabes, eu e o Silêncio, com a Palavra se agitando entre nós. Não sei mais o que fazer disso. Deixa que te fale o que não sabes que se passa fora da Sombra que te abriga e protege dos homens sob a nossa escada. Depois, ainda havendo palavras, gostaria que me falasses dela, dessa Sombra-Penumbra sobre a qual prefiro nada saber. Para que não se dissolva, como tudo. Por que a elegeste para teu lar, justamente essa Sombra na minha casa? K - lembra - escreveu sobre a Humanidade inteira adormecida à noite em suas casas, seus leitos, a Terra vagando na Noite do Universo. Todos entregues, inocentes. Quietos. Calados. Sonhando. Respirando. Vagando. E agora vens me lembrar que na minha casa sobre a Terra há esse Recanto Sombrio que eu já não lembrava que existia, ou nunca soube que existia, e sempre soube que estava sob os meus pés, descendo as minhas escadas. Agora, eis: tu, Odradek, estás aí. Aqui. E és como que o meu Hóspede não convidado jamais, mas sempre esperado?

Odradek:

- oo

vFc:

- Sim, quem sabe. Me diz: Odradek, tu me vês como eu te vejo? Ou penso ver? Tu também tens olhos, que eu em ti não vejo? Só essa estrela. Um Olho em ti vê o mundo e também, como gente, és visto não visto pelo Olho do Mundo? Ou ele - a ti, mas não a nós - vê? E Kafka, um dia te viu? Por que não te desenhou como seus homenzinhos esmagados em preto sobre a folha da papel ainda branca, hoje amarelecidas no Museu de Praga?




Odradek:

- oo?

vFc:

- oo, OO?

Odradek:

-

vFc:

- OoO?

Odradek:

- oOo

vFc:

- oOodradek?

Odradek:

- o

vFc:

- Sobre isso de OlhOs, ouve o que te revelo agora, Odradek, ouve a: Fonte dos que dormem. É o nome do segundo, recém-surgido. Faz só uns dias. O nome do que veio primeiro? Ah, faz dois meses, e seu nome quis ser, vê só: A Lua é o Sol. São filmes. Voltei a olhar pelo Olho Mecânico as coisas, há trinta anos não fazia isso. Ah, desde 1979. Nesse ano me interditei olhar através dEle e me elegi olhar só pelo Olho da Voz da Literatura. O primeiro livro voou de Andara: A asa e a serpente. Ah, sim, oh, já começamos assim: uma Ave ergue vôo com um serpente nela atada, ou viceversa. É posssível separar as Serdespantes das Aves, Odradek? E agora, 2009, eis que o Olho Gelado retorna diante do meu. Ser é perceber, ser é ser percebido. Berkeley/KinemAndara. Não é Cinema nem Literatura, chamo de KinemAndara - kinescritura: um híbrido de Imagem & Escritura, que se buscam reciprocamente, a partir da matriz comum a ambos - o Visível+o Imaginário+o Sensível.

Odradek:

-

vFc:

- Ah, Odradek, se o mundo de Fora fosse como esse de Dentro.

Odradek diz:

- #o#

vFc:

- O que queres dizer com isso: #o#? Que algo irá se partir e um dia o mundo Névoa de Andara vai ganhar o mundo de fora? Te digo: Andara passa invisível no tempo da Unidade perdida, o mundo por fora sendo Reminiscência desse Tempo sido? Mas Ela, Andara, crê que Ele ainda é, o o V do Ver, Velado agora em nós. Andara, então, se desvale pela Vida para re-des-velar esse Tempo soterrado sob o tempo transeunte - o não Eterno tempo da História humana extraviada do Uno. Andara tenta restaurar as Ascensões humanas

Odradek:

- oO?

vFc:

- e para isso, abandona o humano e demanda o umanoh - onde o H deslocado para o fim da palavra, para a frente dos nossos olhos na direção da esquerda para a direita em que no Ocidente se lê, liberte o Um com que o UManoh se iniciou antes de SerSaber haveres se des-co-incidido um do outro. Agora, andam assim: desgarrados: Ser para um lado, Saber para o outro. No Vários. É a tentativa de Andara: evocar evocar evocar que Ser e Saber re-co-incidam. Perdemos nosso senso de Saber e, logo, nosso Ser - e no lugar deles, Unos, agora vamos assim por dois caminhos vulneráveis e obscuros: o Ente (onde antes o Ser) e isso: o Conhecimento, feito de acúmulo de informações (onde antes o Saber). Isso se deu, e se antes habitávamos no foradentro, sem distinção, agora fomos expulsos do Dentro e passamos a deambular pelo Universo exilados, extraviados da nossa Residência na Vida. Só alguns Alguns - ou todos, ainda, mas dissimuladamente -

Odradek:

- agora fomos expulsos do Dentro e passamos a deambular pelo Universo exilados, extraviados da nossa Residência na Vida.

vFc:

- Oh, Odradek, ouvi meu Eco em ti. Enfim, ouvi algo de ti. Ouvi? Agora. Tu és miragem de ecos, Odradek?

Odradek:

-

vFc:

- alguns, Alguns, eu dizia, ainda se recordam, vagamente, de que houve um Templo Original, onde atualmente só percebemos o decorrer erosivo do tempoespaço. Viagem a Andara sendo coisas assim.

Odradek:

-

vFc:

- OdradeK, tens algo a me dizer sobre o que ecoOou em ti? Foi Ó?

Odradek:

-

vFc:

- Ooh, mas eu acabo de ter uma visão de K em ti, Odradek: K no teu Nome, odradeK. O que significará isso para nós, humanos, essa revelação de um carretel de linha com uma agulha espetada. No coração? Tens um Coração, odradeK? Rasgado? Queres que o costures para ti. Re-teça?

Odradek:

-

vFc:

- oÓ dradek

Odradek:

- #




vFc:

- Odradek? odradek? Adormeceste, ou eu sou agora só o que quem sonha?




Odradek:



- k




vFc:

- OdradeK, eu ainda ouço o grito de Blake: - Newton vê com os olhos, eu vejo através dos olhos