3 de julho de 2009

ENTREVISTA: Serdespanto na Amazônia









Bertrand Brasil, Rio, 2006





Só agora, em 2006, lançado em edição brasileira, o livro 'Ó Serdespanto', criado na região por seu autor, o paraense Vicente Franz Cecim, saiu em Portugal em 2001, onde foi considerado um dos melhores do ano.












Íman, Lisboa, 2001




Por EDSON COELHO

Certamente o homem já foi planta, como já foi calango e talvez caranguejo. O homem era apenas natureza. Da mesma forma, o homem será apenas pensamento e apenas sonho. Talvez apenas sensação. O que primeiro impressiona na literatura de Vicente Franz Cecim é o reencontro com o primordial-imemorial e, ao mesmo tempo, o encontro com o futuro, não com um corpo do futuro, mas com o ser. O ser somente. E impressiona sobretudo isto: Vicente não escreve sobre o mistério, não criou um estilo para tematizar a metafísica, para especular. Vicente é o mistério. Seu estilo não é um suporte para a revelação, as idéias: seu estilo é a revelação, o pensamento. Vicente é a metafísica. É o passado e o futuro.

Vicente é, e seu novo livro, 'Ó Serdespanto', que lança pela Bertrand Brasil, outra vez comprova seu talento original e portanto indispensável, essencial.
'O Livro não é a vida. É a outra vida', diz Vicente logo na primeira página de 'Ó Serdespanto', e ainda 'Isto é uma fábula com mãos humanas', ou ainda 'Um céu de carne, o corpo, o humano, com suas estrelas apagadas'. E mais, como diz o próprio Vicente, na entrevista a seguir: 'Ser é sonhar. Ser é ser sonhado.'

Vicente Franz Cecim é o sonho.




Edson Coelho: Como você definiria este novo livro?

Vicente Franz Cecim: Uma pergunta, sem resposta? Um delírio mítico, místico? Vamos simplificar, e dizer que ele seja apenas: - Um Conto de Fadas para adultos.

EC: Neste volume, o Serdespanto parece ser tanto o personagem, o que ele sonha, o leitor, o que o leitor sonha, o autor e também o que ele sonha, e por fim a própria literatura. Como você analisaria estas relações?

VFC: É assim mesmo: - Tudo sonha e se sonha. Berkeley, o filósofo favorito do meu filho Bruno ‘Lobo do Sonho’ Cecim, dizia: - Ser é perceber. Ser é ser percebido. Eu tenho um Encanto por essa percepção que ele teve, uma das Elevações da intuição da Filosofia. Mas após todos esses anos sonhando Andara, e habitando a Miragem de Ser, eu hoje acho mais justo dizer: - Ser é sonhar. Ser é ser sonhado. E esse filho, que uivava adormecido desde recém-nascido, sonhando que era um lobo, parece que concordava comigo desde então.

EC: A contemporaneidade parece marcada pelo futuro, pela ânsia do futuro. Você cria um universo voltado para o imemorial, para as relações onírico-primordiais das coisas, pessoas, elementos. É exatamente aí que está o sentido de sua literatura nos tempos atuais?

VFC: A superfície das coisas e só ela se deixa dividir dessa maneira - Futuro, Passado - mas no fundo do Profundo alguma Coisa é in-divisível. O Imemorial é que tudo está, sempre, se-fazendo e se-des-fazendo. Este Presente é um ir-e-vir de algum lugar para lugar algum. Nisso estando a nossa perdição? Ou a nossa imensurável libertação - não digo libertação do Homem, não é isso, mas a libertação do Humano, através do que, em Andara, eu chamo de o umanoH. É assim mesmo - esse H, que nem aspirado é, se deslocando nos livros de Andara para o fim da palavra, ou sua vanguarda, no sentido do avanço da escrita ocidental - des-obstruindo o nosso possível U de sermos já sem fragmentações: no Uno. Nem sub nem sobre - mas através. Essa é, ela sim, uma Aspiração muito elevada. Se situar num ponto de vista em que todos os tempos, todo tempo, são tempos atuais. O que seria o mesmo que dizer: imemoriais. É esse o Senso - não exatamente o sentido - da literatura Visível & Invisível de Andara.

EC: 'Ó Serdespanto' foi lançado primeiro em Portugal, onde foi considerado o segundo melhor lançado por lá em 2001. O sucesso no País que nos ajudou a engendrar o surpreendeu? Fale mais da receptividade de sua literatura em terras lusas.

VFC: Há este país grande, violado, humilhado, que ainda lê pequeno. Rosa é tão belo quanto Pessoa, não é disso que se trata. Estamos submersos em literatura pré-fabricada, e autores pré-fabricantes, com a mesma má-intenção com que nos sub-imergem em filmes pré-fabricados, música pré-fabricada. Ex-arte, arte de manipulação. Produto. Sabemos quem nos faz isso, frontalmente: o país de Bush. O mesmo país de Clinton? Afinal, qual é a diferença? Tantas vezes consideramos Cultural o que é só um Lamaçal. Como vão emergir disso os nossos novos criadores? É uma forma de Violência que não sangra como o Iraque, mas silenciosamente também nos esvazia. Quem ousa retornar à Arte, quem quer libertar o Homem no umanoH - quem? Precisará se banhar em outras águas, superiormente cristalinas. O que surpreende é a longa duração da nossa submissão, nossa passividade a esse estado de coisas. Aqui, deste lado do Atlântico. A receptividade portuguesa não me surpreendeu. 'Viagem a Andara oO livro invisível' já vinha sendo bem recebido no Brasil, apesar do estranhamento quase generalizado, desde o primeiro livro visível que se escreveu através de mim, em 1979: 'A asa e a serpente'. E Portugal é um país pequeno que lê maior que nós.

EC: Desde 1979 você vem construindo o universo de Andara. Algum novo livro em vista, dentro desse universo?

VFC: Ainda estão inéditos 'óÓ: Desnutrir a pedra'(1) e 'Breve é a febre da terra', já escritos. Também são Iconescrituras, como 'K O escuro da semente', lançado em Portugal em fins de 2005. Tenho me surpreendido balbuciando estranhas palavras de um novo livro que parece querer se chamar 'Lágrima que os olhos não viram'(2): um vento se esconde de um homem na Floresta Andara, imobilidade nas folhas, silêncio nos galhos, e expectativa - silêncio e espera, e imobilidade, e espera. E silêncio. - Onde, o Vento? Creio que será uma fábula, final, acerca da transição do Homem para o umanoH.

EC: E a literatura brasileira hoje? Como você a analisaria, e que nomes são mais destacados?

VFC: O país é grande e cheios de sombras. Tento des-vendar um pouco do que há por aí. Entre os mais antigos, bem conhecidos, há aqueles que não se vendem, como Carlos Nejar e Manoel de Barros. E há os que se vendem, apesar de nomes já famosos, reescrevendo para editores avidamente comerciantes versões de obras intocáveis como 'As Mil e Uma Noites', 'Dom Quixote', ou deformações de Homero, de Shakespeare, do Melville de 'Moby Dick', ou das 'Viagens de Gulliver'. Uma lástima. Mas outros se mantêm fieis a suas eleições, e cito Cláudio Willer e Floriano Martins - soprando o fogo do Surrealismo e promovendo a descoberta dos autores latino-americanos ocultos atrás das nossas fronteiras ocidentais. Entre os mais novos - mas atenção: tantos estão silenciados, submersos, e não sabemos quantos - lembro Márcia Tiburi, Fabrício Carpinejar, Carlos Emílio Corrêa Lima, Juliano Pessanha, Rodrigo Petrônio, Wesley Peres. Ou o ainda mais obscurecido Arturo Gamero, ou Gabriel Kolyniak. Autores só de manuscritos, ainda sem livros. Emergem de uma geração que eu vou chamar de: ardente. Têm força, paixão, e estão conscientes do que fazem. Mas todos - entende - são só exemplos. Entende? Exemplos.

EC: Uma rápida busca na internet sobre sua obra mostra uma variedade grande de admiradores, entre os quais muitos escritores jovens. Você influencia os autores que o admiram, ou sua literatura é tão pessoal que não arregimenta seguidores?

VFC: Gerar seguidores, no sentido de criar discípulos - que horror. Eu me mantenho à margem, digamos assim. Sou um franqueador, ou flagelador, de caminhos. Outros, antes de mim, também já flagelaram os caminhos por onde eu agora passo.

EC: Afinal, o que é a literatura para Vicente Franz Cecim? Quem você admira, quem lê e relê?

VFC: Ando lendo os Gnósticos: Valentino de Alexandria e os outros, Tomé, João, toda a chamada biblioteca de Nag Hammadi, descoberta em 1945. E 'O Evangelho de Judas', achado mais recentemente, também ao acaso, em 2001. Leituras imemoriais? E as leituras que - acaso - se Benedito Nunes, nosso pensador, andasse fazendo agora sobre a Nanotecnologia e o Futuro, não são desde já imemoriais?

EC: Algum conselho para os jovens autores?

VFC: Ousem. E ao mesmo tempo: - Fiquem quietos. A maior ousadia é ficar quieto, não se meter no tumulto do mundo. - E cuidado com o velho Ego. Um criador real é um Instrumento de uma Criação mais Real que nós. - Não deixem a Vaidade se instalar.


(1) 'oÓ: Desnutrir a pedra' foi editado pela Tessitura em 2008.
(2) Livro em andamento, com o título 'Oniá um Lugar cintilante'.