10 de julho de 2009

Flagrados em Delito Contra a Noite no Coração da Luz

M A N I F E S T O S
C U R A U

I & II












O pássaro Curau vôou
pela primeira vez nos céus de Andara
em 1981, em Os jardins e a noite, terceiro livro visível de
Viagem a Andara oO livro invisível.









V I C E N T E F R A N Z C E C I M

















1979/2009: 30 ANOS DE VIAGEM A ANDARA

1975/2009: 34 ANOS DE KINEMANDARA

1983/2009: 26 ANOS DE MANIFESTO CURAU











MANIFESTOS CURAU/PARTE I: PALAVRAS DE ABERTURA










Dom Fugaz


Enquanto Flagrados em delito contra a Noite/Manifesto Curau, o Manifesto I, de 1983, foi uma Palavra para Todos, o que falou após ele vinte anos depois: No Coração da Luz/Segundo Manifesto Curau, ou não é uma Voz que se dirige, com menos ingenuidade, objetivamente cético-estóico-Sêneca apenas às Gerações Futuras. Nesse sentido, houve, em relação ao que o anterior propunha, uma redução de expectativas ou um des-iludir-se como libertação das falsas esperanças: - Como creio que as Mutações das Consciências se darão lenta e impura mente mescladas aos vícios mentais acumulados nas gerações passadas, tendi a inclinar minha esperança para um Dom da Vida: a Fugacidade dos Homens e das Coisas. E louvar que nada, em baixo, se mantenha o Mesmo - sim, Heráclito - embora tudo, no alto, permaneça o Uno - sim, Parmênides. Pois parece um Bem e uma Graça que os homens, enquanto Entes da Vida Visível, a manifesta, sejam Efêmeros e as coisas mutáveis, e que os frutos antigos desmoronem e se desfaçam, mas semeando Sementes. Eis, estão : - Se essas Sementes vierem contaminadas por Aquilo, oculto, que levou o Fruto à decadência, estão estaremos perdidos. Sonho esta Utopia, no foradentro da VidAndara: - Sonho que, Se, florescerem duas gerações inteiramente inter-rompidas com o passado, nascidas - que Milagre, ó ser de espanto - sem antecedentes - isso limparia, lavando e queimando, a Vida humana de seus Vícios públicos e privados. E assim entendo que metáforas como Dilúvio & Apocalipse são, especificamente, essa Fugacidade que possa vir nos libertar das cadeias. No duplo sentido, de elos e prisões.








VFC.
Belém, Amazônia, Brasil,
Junho/2009.








MANIFESTOS CURAU/PARTE II: FLAGRADOS EM DELITO











Flagrados em Delito Contra a Noite/Manifesto Curau

Vicente Franz Cecim








O menino ouvia.

- O medo só veio para aqueles que tinham as suas velhas razões para ter medo, e esses passaram a ter medo então do Curau. Eles têm medo de tudo, dizia Jacinto. O menino ouvia.
Quando a ave veio, aquele medo andava pelas ruas com passos que nunca levarão a uma terra sagrada, menino, dizia Jacinto.
E o menino ouvia.

Os jardins e a noite, 1981/* Foi neste terceiro livro visível que o pássaro Curau surgiu nos céus de Andara pela primeira vez





Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso.
Este é um esforço que precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias direções, para obter êxito.

Historicamente, a História vista com um outro olho, não essa de a prioris infalíveis, mas uma de navegações frequentemente sem leme e em rumo incer­to,
historicamente, a falência do Ocidente culto instituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos magros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar solidaria­mente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos sonhos.
Aí se instala o reduto central da opressão, desse Ocidente auto-suficiente e, em decorrência, rancoroso, reduto que as nossas confrontações libertárias com o colonialismo devem atacar cada vez mais.
As fábulas do Ocidente culto são, assim, quando existem, frequentemente documentos de um terror.
O terror de permitir que os sonhos humanos penetrem no real para fecundá-lo de desejos nos limites do impossível, seduzindo toda sensatez domada, estabelecida, libertando o real da racionalidade infame. Essa senhora respeitável e, no entanto, maníaca.

Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos e homens, nesta Amazônia em transe permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure.
Onde se oculta, e como se dissimula, o medo ocidental?
Sua recusa sistemática da dimensão imaginária humana?
Afinal, e claramente, um mecanismo de civilização em processo de autodefesa tão suicida como crimi­noso, como qualquer outro verificável em individuali­dades retorcidas pelo esgotamento de uma existência sem revitalizações permanentes?
Marx dizia que, na História, os acontecimentos se repetem como farsas. O Ocidente culto é a repetição de uma repetição, a farsa de uma farsa.
Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quando observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engrenagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes, hoje, ela despedaça o próprio ociden­tal – e faz dele sua vítima mais imediata, não esqueça­mos isso – carente como ser dado ao mundo social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – es­tas, também um fêmur roído até a fronteira das ceri­mônias sociais já sem sentido.
O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas formas de luta.
O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.
Porque, na verdade, esse Ocidente nega o real, sob o álibi de recusar o sonho em nome de uma reali­dade que, de fato, é vazia e inexistente, porque mero artifício engenhoso engendrador de uma forma de do­minação que se quer estável e permanente, certeza e reafirmação da manutenção perpétua de um poder.
O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da Áfri­ca, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina.
Também não temos o direito de esquecer que é com esse medo que as autoridades desse Ocidente cul­to submetem o indivíduo ocidental anônimo: latente aliado do Terceiro Mundo para uma insurreição em escala planetária.
Esse medo é o manifesto temor, de impulsões assassinas – os massacres do imperialismo estão em toda parte, inclusive na expansão de um novo imperialismo europeu de esquerda – de um organismo arcaico ante a emergência de novas vitalidades sobre o plane­ta.

O equívoco das lutas antiimperialistas circunscri­tas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte-americano, inclui estratégias mais vastas e in­visíveis, que utilizam a cultura - a Cultura, exprime melhor - e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das cultu­ras do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertado­ra.
Assim é que esse Ocidente, tendo tudo a perder, nem vivo no real, nem mais vivo ainda na incorpora­ção de um real total pela incorporação do além-fronteiras do onírico humano,
quer, insiste em se propor como modelo alienador, das culturas oprimidas.
Freud continua sendo para o Ocidente culto uma ferida aberta no seu inconsciente, perigosa, e que o Ocidente precisa cicatrizar, esquecer, e a conversão de suas descobertas em estratégias terapêuticas é a mais explícita constatação da manifestação do medo ocidental diante do imaginário.
Será compreendendo que, do outro lado do Atlân­tico e mais acima dos Trópicos, se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.

O real está em toda parte, sim,
mas sob o domínio do medo ele se transforma em fantasia e fuga ao real.
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela.
E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.
E é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso rom­per tabus, negar-se a velhos cultos.
Quantos de nós se dispõem a tanto?
Há tribos na Amazônia que afirmam:
– A vida é uma ilusão, só os sonhos têm realidade.
Não.
Não se trata de mais uma alienação, mera crença.
Antes, é preciso ver nisso a presença de uma consciência que já viu.
E viu o quê?
É simples: ao tomar o real expresso como o Real, o homem se amesquinha e trai seu projeto de ser ine­rente: ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa volta é, na Amazônia, social­mente, a transplantação da realidade forjada pela cul­tura do dominador, herança a que nos forçam.
Alguém já disse: - Do fundo de uma prisão, um homem pode fechar os olhos e destruir o mundo.
É disso, enfim, que se trata. Desse poder. E nós o temos, mas ele dorme entorpecido o nosso sonho de região sem voz, sem identidade, sem alma – porque fomos desalmados pelo invasor.
Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus er­ros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos do­minadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrin­do mão.
A Amazônia é uma irrealidade, então? Uma utopia? Um fantasma geográfico habitado por fantasmas humanos? É?
Também. Da perspectiva da nossa opressão, isto é trágico; mas da perspectiva da nossa realidade, aí está o começo da nossa liberdade. E não apenas em re­lação ao colonizador, mas também em relação à pró­pria vida, para nós, potencialmente, um dado lúdico.
E no entanto, aqui se morre, se nasce em ondas, há a fome em estado crônico, homens doentes nos olham nos olhos às vezes com paixão, outras vezes com ódio. Tudo é igual à vida como ela é, vista por fo­ra.
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.
Esta: para além do real que me é dado pelo mundo,
e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim,
resta-me o recurso de um jogo.
E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:
– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
Foi isso o que o colonizador esqueceu, e por isso ele fez de sua história uma História lenta, mas fatalmente, contra a sua própria vida.
Tudo isso vemos, e não vemos, não temos visto, como um espetáculo exposto à nossa consciência: o drama de um naufrágio. O naufrágio do modelo da civilização ocidental.
Repetiremos sua encenação?

Nesta geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos.
Nada a conter. Não nos peçam a coerência e o linear.
A região é barroca. Barroca, aberta e canibal: um dia caberá fazer esta, a última afirmação, com mais propriedade.
Se, como no zen – citação de canibalismo cultu­ral, desde já – me dizem que o corvo da História é negro, me cabe amazonicamente libertar-me na proposição de um outro corvo, mesmo que isso seja aparentemente uma loucura,
o absurdo,
e dizer: - O corvo não é negro.
Aí começam as chances do meu corvo não ser ne­gro. O corvo da História, o meu corvo de ser.
Minha revolução se faz de inversões que me li­bertam do dado, do imposto, do plausível. Não sou, não quero ser plausível, grita essa região que também já viu, mas esqueceu, foi forçada a esquecer.
Fincado no coração de suas dialéticas racionalistas, o Ocidente, que preferiu eleger para sua tradição a Grécia pós-pré-socráticos, a Grécia lógica, ignora esse jogo.
- Estamos na ilusão, também diria um Heráclito mura.
E essa herança libertária de um filósofo jônico alógico – é preciso exercitar sempre o canibal cultural que preciso ser, diz a região – recusada pelo medo ocidental, nos serve, porque com ela, também, aprendemos a negar a realidade da fatalidade histórica de subnutridos que o Ocidente e sua dominação nos impõem.

Acima foi dito: A minha História amazônica só te­rá realidade quando o meu imaginário amazônico se apossar dela.
O meu imaginário de homem e região.
O que significa isso?
O que seriam homem e região em coito cultural, sendo juntos?
Temos as manifestações de uma arte popular en­tre nós. Frequentemente folclorizada – alienação in­terna da região, alimentada pelo colonizador, frequen­tador de um circo pacífico que ele aplaude para que se mantenha assim – no entanto, creio, é daí que virão as nossas mais decisivas oportunidades de escapar aos rigores e ao vício de uma estética imposta a nós.
Os nossos criadores cultos, repetindo um padrão do Ocidente colonizador, têm se apropriado dessa arte popular para apresentá-la sob a forma de um regionalismo inexpressivo, superficial.
É preciso denunciar essa operação, e insistir em criar meios para que essa arte se expresse por si, para que ela não seja expropriada.
A outra alternativa, a de que homens de cultura busquem a cultura popular e a manifestem em sua própria arte, só pode ser um dado revolucionário quando vier sob essa forma, conforme foi declarada por Glauber Rocha na televisão: - Sou um bárbaro e as minhas raízes são as culturas populares do Terceiro Mundo.
Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar.
Falo do Sertão de João Guimarães Rosa.
Não apenas como literatura, mas como espelho válido para todas as nossas linguagens: plásticas, sonoras ou aquelas do silêncio da nossa perplexidade regional, amazônica.
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente,
com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressa­do como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital?
Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa me­táfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um ho­mem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta.
Esse tomar-se como indivíduo e ir mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar me­lhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós,
e também esse tomar uma região para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da inven­ção do fogo,
essa operação, enfim, de mesclar destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando-nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de reali­dade imposto a ferro pelo colonizador.
Será, antes, entregando-nos embriagadamente à nossa condição de homens,
digo: de inventores de uma realidade mais vasta,
será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a Razão do imperialismo, André Breton,
e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos.

Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós.
Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo.
Essas são as práticas urgentes. De uma perspecti­va menos elementar, essa é a nossa fome mais urgen­te.
Contra o colonizador, nacional e estrangeiro, mas sem a miséria da xenofobia rancorosa,
e insistindo nos valores da insolência e da transgressão.
Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região.
E, por isso, e para isso,
então,
temos: Posição: contra o regionalismo e ao mes­mo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa.
E todos os sentidos advertidos contra os engodos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados.
Para realizarmos essa operação, precisamos aprender a ouvir as falas do inconsciente falante ge­ral, que é de toda a região e de ninguém em particular – abaixo o emblema fixado contra a porta do imaginá­rio amazônico, aquele que diz: "Propriedade Priva­da".
Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.
Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os indivi­duais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida.
É preciso dar-se, deliberadamente, a ela.
E é preciso insistir:
Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.


VFC.
Belém, Amazônia, Brasil,
Março/1983









MANIFESTOS CURAU/PARTE III: NO CORAÇÃO DA LUZ










No Coração da Luz/centelhas para um Segundo Manifesto Curau, ou não

Vicente Franz Cecim








- Nossa História só terá realidade
quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor





Assim calava a sua Voz, retornando ao Silêncio que sempre se segue a todas as últimas palavras de tudo que se fala, se escreve, se pensa, também, o primeiro Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite lançado em Belém, no clamor dos debates suscitados pelo Congresso da SBPC/Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1983.
O que restou dele? A invenção de Andara, transfiguração da Amazônia em região-metáfora da vida, seguiu o seu roteiro de viagem sem roteiro à deriva pela vida, passo a passo, através de cada um dos livros visíveis de Andara, enquanto manifestações do não-livro, o que não é escrito: Viagem a Andara oO livro invisível.
Se desde A asa e a serpente, em 1979, foram os primeiros livros de Andara que suscitaram as exigências contidas no Manifesto Curau, e sua incontida manifestação pública, a partir do ano do seu lançamento, em 1983, os demais livros de Andara se dispuseram a realizar essas exigências e a isso vêm se doando, tem sido assim, até a publicação de Ó Serdespanto, em 2001, em Portugal e só em 2006 no Brasil. Até K O escuro da semente, livro visível que também apareceu primeiro em Portugal, em 2005, e até hoje aguarda olhos brasileiros que talvez nem se abram para ele. Mas em 2008 o mais novo Andara, oÓ: Desnutrir a pedra, novamente atravessou esta resistência nacional.

A essência das exigências que fiz a mim mesmo, antes de fazê-las a outros, contidas no primeiro Manifesto, continua intocável: trata-se, ainda, e disso se tratará sempre, da expansão do imaginário amazônico. Tem sido ele, o Imaginário da região, a minha única companhia na solitária aventura estética e espiritual que é a Viagem a Andara, esse percurso claro-escuro entre as coisas que são e as coisas que não-são, que, tendo se iniciado a partir da hipótese Andara=Amazônia, chegou à inversão dessa hipótese originária, e atingiu o ponto, sem retorno, em que já se dá, atualmente, a formulação: Amazônia=Andara. Pois durante a viagem, Andara cresceu, além de si e além de mim, e se expandiu em região-metáfora da vida ela toda, inteira, da terra ao céu, das serpentes às asas mais vastas, para bem além das coisas que a visão humana já não alcança, e apenas pré-sente, se territorializando como Lugar de Todos os Lugares – o que equivalesse a dizer: se desterritorializando em Lugar de Lugar Nenhum - para além da Via Láctea, incluísse outras galáxias, outras hipóteses de Ser, Andrômeda que pacientemente esperará milhões de anos-luz para nos devorar, Suprema Mutação imensa, que não caberá nos limites dos nossos olhos exteriores - certamente, sim – está lá em Silencioso como o Paraíso. E quem sabe isso se dando por conta do alento onipresente e sutil que a ela veio acrescentar o meu filho Franz, que, desde 1993, quando um assassino impune o transformou em homem invisível, seu nome tendo sido incorporado ao meu nome, veio se tornar meu solitário companheiro de viagem: ele Lá, eu ainda aqui, nesse aquizinho de nada
em que sobrevivemos ora sonhando de olhos fechados, ora sonhando de olhos abertos e escrevendo livros.
Andara sendo um território que se doa ao imaginário amazônico e a todos que dele quiserem se apossar, pois lê-se em sua entrada uma inscrição inversa a do Inferno de Dante, que diz: Ó vós que entrais, trazei toda a esperança, Andara, então, se dispondo se entregar desde sempre ao uso comum, coisas curiosas passaram, ainda que muito rarefeitas, a acontecer: - Rafael Costa Costa me pediu um dia permissão para ambientar sua novela infantil em Santa Maria do Grão – essa tosca capital arcaizada de Andara que, em sua vocação de permanência-em-ruínas, de si exclui a face banal efêmera de Belém do Pará. - Jorge Mun se dispôs a por em práticas as exigências do primeiro Manifesto e esboçadas nos primeiros livros de Andara e escreveu Onde, livro delirante que lhe agradou dedicar a mim – e, bem recentemente, eis Nicodemos Sena brincando nos limite do exagero de me transformar em personagem aéreo em seu A noite é dos pássaros, onde declara se inspirar no ideário proposto em Flagrados em delito contra a noite: - Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.

Foram sinais, sinalizações externas, mais de que?
As exigências do Manifesto Curau não sendo somente poéticas, mas também políticas, pois trata-se de uma manifesto poético-político, tantos anos depois ainda somos flagrados em delito contra as nossas noites e os nossos dias, ao constatarmos, hoje, que quase nada realizamos do que aquela Voz faz tanto tempo nos pedia.
O projeto acima citado, certamente utópico – mas no sentido estrito em que essa palavra quer se significar Lugar Nenhum onde, por isso mesmo, cabem Todos os Lugares - de nos apossarmos decididamente da nossa História pelo nosso imaginário de homem & região, conscientes de que toda a nossa força só provirá daí, ainda está muito longe de se tornar realidade, e o que é mais grave: parece até mesmo se afastar cada vez mais de nós.
Fogos mortos, mortais, cada vez mais se acendem na Sagrada & Violada Floresta,
mas não iluminam suficientemente a Face Oculta da nossa consciência regional.
Diante disso, o que resta fazer? Insistir, persistir nas exigências do primeiro Manifesto Curau, tentar fazer com que a sua primitiva Voz ainda ressoe através desta centelha talvez propiciatória a um segundo Manifesto Curau, ou não, e que ela encontre acolhida nos ouvidos das novas gerações e se transfigure em prática cotidiana do ato de sonhar em estado de vigília.
É sobretudo a essas novas gerações, que hoje têm a idade que meu filho Franz tinha quando ainda estava visivelmente entre nós, homens, que cabe soprar apaixonadamente o Real e fazer reacender o Fogo das Cinzas.
A vocês cabe a missão, o passo insurrecto.
Quantos ousarão?
Ou dão o passo em falso que a vida exige de nós, para além ou aquém dos limites que uma civilização
agonizante quer impor ao ser humano, ou só lhes restará fazer a triste opção de se tornarem herdeiros da nossa impotência regional.
Parem um instante as agitações vazias. Olhem ao redor, observem, olhem principalmente dentro de vocês mesmos.
Se instalem, por alguns momentos, entre o vazio que se abria para nós em 1983, ano em que muitos de vocês nasceriam, e o vazio que perdura neste ano de 2009, quando o Manifesto Curau se atira novamente ao mundo gritando suas denúncias, pregando a sua fé.

Se vocês pararem realmente para observar,





não como habitualmente: o Céu da Terra,

mas insolitamente: a Terra do Céu,

*




verão que a Amazônia, apesar de seus torturadores & de seus filhos indiferentes, ainda é o espaço que, aqui embaixo, enquanto todos dormimos os nossos sonos alienados, reflete & dialoga com as estrelas
e, mais atrás delas, com o Oculto Negror de Onde emana toda a luz.
Nos recusemos às Cinzas.
Cintilemos.
Tentemos, ainda uma vez, permanecer no lugar mágico em que a vida nos lançou.
Nós ainda estamos pulsando no Coração da Luz.


VFC
Belém, Amazônia, Brasil
Março/2003




* Stoltius von Stolcenberg: Viridarium chymicum, Frankfurt, 1624




















VICENTE FRANZ CECIM



VIAGEM A ANDARA oO LIVRO INVISÍVEL



BIOBIBLIOGRAFIA





Nasceu na Amazônia, em Belém do Pará, no Brasil. No caldeirão de uma escritura em liberdade, a literatura como alquimia abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural, o profano ao sagrado, e se lança em intensa b

usca do sentido metafísico do ser e da vida. Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou uma longa obra que até hoje continua criando: Viagem a Andara oO livro invisível, em que transfigura a sua região natural, a Amazônia, em Andara: uma região-metáfora da vida em que o sobrenatural emerge em epifania. É onde ambienta todos os seus livros.
Andara sendo a Amazônia vista com olhos mágicos, como já foi dito, também é literatura fantástica, mas à medida que individualmente os livros visíveis de Andara vão sendo escritos, deles surge o livro invisível, que já é literatura fantasma, segundo o autor, o não-livro, que não é escrito: corpo de um corpo que se sonha. Em 1980, o segundo livro individual de Andara, Os animais da terra, recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Apca – Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara, o livro invisível (Editora Iluminuras, São Paulo) reunindo os 7 primeiros livros de Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca. Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo) reunindo mais 4 livros individuais de Andara. Em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, publicou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como um dos melhores livros do ano. Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os 7 primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e Terra da sombra e do não (Editora Cejup, Belém). Em novembro de 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura, também em Portugal: K O escuro da semente(Ver o Verso, Maia). Em 2006, saiu a edição nacional de Ó Serdespanto (Bertrand Brasil, Rio). Por ocasião da publicação dos seus primeiros livros, o autor declarou: Prefiro interrogar os limites e a existência da própria literatura. E insinuar, para além da literatura fantástica, o advento de uma literatura fantasma. E, em recente entrevista, disse: O natural é sobrenatural, o sobrenatural é natural. Foi o que o Andara me revelou. Já não faço Literatura: faço Escritura. Dos passos mais recentes do autor através de Andara, atravessando através da carência das palavras que o levou a eleger a forma híbrida de escritura e imagem, que denominou Iconescritura, resultaram também os livros oÓ: Desnutrir a pedra, lançado pela Tessitura em 2008, e o inédito Breve é a febre da terra.