23 de agosto de 2009

As vertigens da Iconescritura

Por Nilson Oliveira


uma passagem pelos abismos de K O escuro da semente














A poesia nunca conta histórias.

Oferece uma série de imagens.

Representando-as em minha memória,

apoderando-me de seu código,

posso elevar-me ao seu mistério.


Abbas Kiarostami



Algumas escrituras chamam atenção pela densidade da sua geografia, pela singularidade do seu estilo, pela força que transparece a cada nova obra empreendida. São essas escrituras que movimentam o espaço literário, estão sempre adiante, sendo sempre outras. Assim vemos os chamados livros de Andara, a literatura invisível. Na verdade não propriamente uma literatura, mas uma espécie de escritura do possível, engendrada por um sistema de palavras, que vem de livro a livro criando e reinventando a vida que passa e acontece dentro e fora da literatura. Os livros de Andara seguem essa rotina num movimento infinito; primitivo, absoluto, A-N-D-A-R-A, buscando na linguagem o que se encontra fora dela, como o afastamento dos Deuses, percebido por Hölderlin. Afastar-se de Deus para encontrar uma linguagem outra, aberta; o aberto aqui quer designar tão somente uma fala indeterminada que, por fora da linguagem estabelecida, se engendra em uma profusão de fluxos; são ondas intensas de pensamento e agitação motora, por onde os saberes se atravessam e multiplicam-se na velocidade de um devir. A linguagem de Andara volta-se sobre si própria, tornando-se um espaço de renovação, de reduplicação do que já foi dito pela linguagem, uma dobra. Nessa esfera onde havia uma identidade, ela se desfaz, não em nome de uma outra verdade, mas para dar lugar ao processo de singularização, de criação artística, movido pelos ventos dos acontecimentos. Todo acontecimento, dentro ou fora da linguagem, sempre provém de uma dobra. Com efeito, a escrita de Andara é uma dobra, uma abertura que areja o pensamento literário. A escritura de Andara é uma forma atravessada pela exterioridade e como tal uma realidade que constantemente se auto-engendra, feito uma lança arremessada ao porvir, sempre adiante. Mas segue em movimento próprio, impreciso, pouco perceptível como as escrituras que vagam subterrâneas, transcorrendo por outras margens, lançando sempre novas questões. A escrita de Andara expressa sua própria noção de temporalidade, seus textos se atravessam como um conjunto de anéis quebrados onde cada um expressa sua própria duração, enlaçados por fora de qualquer cronologia ou linearidade, perfilados numa estranha constelação onde a sua escritura ressoa como um mapa imaginário; o seu percurso é indeterminado, mas a viagem conduz sempre ao mesmo destino, Andara: Viagem a Andara, o livro invisível. Assim chegamos nas páginas quase desertas de K, O escuro da semente, nele ingressamos pela superfície, em uma viagem aérea; cartográfica, seus contornos nos parecem imensos, com uma forma híbrida, onde a vida parece jorrar por toda a sua latitude, nos objetos, nas coisas, por dentro e por fora do umanoh; suas personagens transitam como sonâmbulas, ora falando ora gesticulando ora voando, parecem envoltas por um sono perpétuo; dão-nos a impressão de uma vida nômade, silenciosa, mas intensamente vivida, visual. Essa impressão parece ser determinada pela consideração dos efeitos de espacialização, do aproveitamento, recursos da página e dos caracteres tipográficos porque é indissociável de uma situação temporal que a escritura cria de acordo com as próprias leis internas da sua construção, pois a escritura K é também Iconescritura: Há um tempo para a literatura / e um tempo para Escritura / há um tempo para Escritura / e um tempo para Iconescritura; assim lemos nas primeiras linhas de K e ficamos curiosos, Iconescritura, o que designa essa palavra? Talvez um ponto de intersecção no qual compreender é ver e ler. Mas também o entendimento simultâneo de dois sistemas diferenciados: imagem-escrita. Nessa esfera, o leitor é remetido de página a página do livro para um ponto em que esse agenciamento é executado, erigido por intensidades e forças que provêem do fora (o fora é uma permanente agitação de forças que desfaz a dobra e o seu dentro, diluindo a figura da subjetividade até que outra se perfile), em que é possível pensar a imagem e a escrita como possibilidade de um atravessamento, como irmãos siameses, que se designa como visível e enunciável, mas que só se pode ser concebido do exterior de uma escritura e sempre em função de um jogo de forças subterrâneo que desloca o sentido do que é dito ou mostrado. A leitura de K nos deixa um vestígio que nos parece evidente: a verdadeira imagem literária é muito mais do que uma representação do mundo por nós pensado, do mundo por nós vivido, ela acontece alhures, no aberto de uma superfície, mas exterior ao significado, se faz e refaz a todo instante; ela é a busca de horizontes possíveis, de possibilidades outras, encontráveis, talvez, no coração do indeterminado.

A leitura de K nos propõe um exercício intelectual que passa por um esforço de não acomodação que acontece como uma experiência cinematográfica, como o que nos propõe Tarkovski ou Sukúrov: uma ação ontológica.

Em análise prévia podemos afirmar que a leitura de K é também uma viagem visual - a Iconescritura - dá-nos a beleza do momento em sua captura, ela injeta mais movimento na permanência, mas por outro estabelece uma identidade absoluta entre movimento-escritura-imagem, e, com efeito, descobre um tempo que é a coexistência de todos os níveis da duração, a percepção da imagem que resulta no prolongamento do acontecimento. A escrita de K agencia esse prolongamento e movimenta a escritura para exigências de novos signos; leva a literatura para além do seu movimento.


Nilson Oliveira é editor da revista Polichinello. E-mail: nilson_olliveira@yahoo.com.br