K O escuro da semente
de Vicente Franz Cecim
Por António Cabrita
Jornal Expresso, Lisboa
de Vicente Franz Cecim
Por António Cabrita
Jornal Expresso, Lisboa
Previamente, convém dizer que comentar este livro é
um desafio similar ao do mudo a quem se pede para
descrever o mel, visto que não há paráfrase que
restitua o que é do domínio da experiência
restitua o que é do domínio da experiência
e ultrapassa a razão discursiva.
Nos Livros de Andara, que, mediunicamente,
Nos Livros de Andara, que, mediunicamente,
Vicente Franz Cecim, o poeta da Amazónia,
“transcreve” desde 1979, e de que “K O escuro da semente”
é a quarta súmula, a aventura da escrita dá-se como real
“in status nascendi” e o fito (talvez desde “Ó Serdespanto”)
é testemunhar a passagem do relator a
um outro nível da consciência, a esse limiar
um outro nível da consciência, a esse limiar
que a acedemos“, homens, depois das palavras”
(o poeta não se refere ao pós-morte, previna-se, mas
ao “não-mental” do budismo, ou da “Nuvem” de Ibn Arabi),
ao “não-mental” do budismo, ou da “Nuvem” de Ibn Arabi),
e onde o múltiplo, experimentada “a alegria de ser breve”,
retorna ao Um, ao Uno. A dificuldade de leitura deste livro
(que nos recoloca na orbita de Mallarmé, Michaux, Artaud,
Llansol, Edmond Jabès, de Gunnar Ekelof, e de
outros “místicos” ou gnósticos da literatura) e da transmissão
outros “místicos” ou gnósticos da literatura) e da transmissão
sobre aquilo de que trata, resulta do mesmo não nos falar
a partir de um “universo de representações”, colocando-nos
na fronteira de uma realidade não-dual, de
uma outra gravitação onde o quotidiano não tem campo.
uma outra gravitação onde o quotidiano não tem campo.
Dificuldade que se traduzirá no silencio que acolheu
a edição deste livro depois do anterior ter sido considerado
um dos melhores do ano. É um livro que irradia,
que opera em si a metamorfose que anuncia (form
things, not the content, diria Charles Simic).
Em lendo: “o omem de areia se desfazendo,
Forma h/ umana (pag. 284)”, vemos como a grafia,
ao transferir para o fim da linha o agá de homem,
presentifica a energia (o vento) que subjaze à mutação
do ser. É um livro recursivo, difícil, que exige disponibilidade
e atenção, e que reflecte um olhar despido da carapaça
antropomórfica: “Pois sendo os nossos nomes os mesmos,
só as letras sido trocadas (pag. 295)”, o homem é ave,
pedra branca, serpente, Oniro, Caminho, círculo e seta,
flagrada residência temporal. Nascido desta visão “trans”,
o livro faz-nos participar de uma descida ao
coração dos elementos e ilumina o “Vazio que neles transborda”.
coração dos elementos e ilumina o “Vazio que neles transborda”.
De certo modo, “K O escuro da semente”, prolonga o diálogo
entre Pai e Filho que se lê em “Chandogya” (um dos
Upanishades) e no qual um pai pede ao filho para
partir o fruto e as suas sementes e lhe descrever o âmago.
partir o fruto e as suas sementes e lhe descrever o âmago.
Quando o filho responde que “lá dentro não há nada”,
o pai replica: “Meu filho, dessa mesma essência da
semente que não consegues ver, desse essência invisível,
vem, na realidade, esta frondosa árvore. Tu és Isso”.
(Reabro o livro na página 15, leio a dedicatória:
vem, na realidade, esta frondosa árvore. Tu és Isso”.
(Reabro o livro na página 15, leio a dedicatória:
À Areia /de que somos feitos”, e verifico que na dobra
da página existem grânulos brancos, como de areia.
Examino-os, levo alguns à boca: são de açúcar, do café
que tomei a última vez que peguei em “K...”, resíduos
do rompimento brusco do pacote. Será uma coincidência
– uma sincronicidade, diria Jung – mas
registo que esse depósito de grânulos não escolheu outra
registo que esse depósito de grânulos não escolheu outra
página para se manifestar. Essa coincidência operou
uma auto-profecia – simbólica -, fazendo uso de grãos
similares aos de areia. Até na leitura mimetizei o processo
de que o livro dá conta). Cecim, como outros autores
na sua esteira, escreve sempre o mesmo livro sob um
novo ângulo, numa busca do que é mais conforme à fonte.
As figuras, os topoi, as metáforas que se apresentam
neste longo poema já estão presentes
nos anteriores: o homem a quem crescem asas nas costas,
nos anteriores: o homem a quem crescem asas nas costas,
a mão que toca o céu cheio de estrelas, a areia de que somos
feitos, o diálogo dos alimentos do ser, ou a noção de que
“um animal é uma falta de tudo para sempre”.
“K O escuro da semente” ergue-se então como um novo
andamento na sinfonia. Qual é a novidade? Talvez preceda
deste tópico, encontrado na página 106 do anterior
“Silencioso como o Paraíso”: “Tantas vozes// Essas vozes,
entendam, se elas querem vir assim/ São vozes da terra, e irão se
misturando aos poucos, até que tudo unido num só sopro”, pois “K...”
entendam, se elas querem vir assim/ São vozes da terra, e irão se
misturando aos poucos, até que tudo unido num só sopro”, pois “K...”
torna explícito um “procedimento coral”, sendo este, mais
que os outros Livros de Andara, uma pauta onde a música pede
intérprete. Aliás, o livro, numa promessa de sinestesia, oferece
uma chave cromática para a (ilusória, visto
que não passa de um encantamento rítmico,) disjunção
que não passa de um encantamento rítmico,) disjunção
das vozes. Não deixe de as ouvir.
Moçambique, Portugal, 2006
K O escuro da semente (Ver o Verso, Maia, Portugal, 2005) é o segundo livro de Vicente Franz Cecim,
criador de Viagem a Andara oO livro invisível, lançado em Portugal. Em 2001, a editora portuguesa
Íman já havia publicado seu Ó Serdespanto, que a Bertrand Brasil lançou no Brasi em 2006.
António Cabrita, poeta, crítico e editor português, atualmente reside em Moçambique.
António Cabrita, poeta, crítico e editor português, atualmente reside em Moçambique.