10 de julho de 2009

ENTREVISTA: Andara é mandinga de xamã






Gravura Zen: A Busca do Boi.

O boi não está perdido, é preciso
perdê-lo depois de achá-lo.






Por Juliana Maués
















Vicente Franz Cecim é escritor do mundo nascido na Amazônia. Os 15 livros publicados, obras aclamadas no restante do Brasil e na Europa, são estranhos, no bom sentido do termo. Tudo o que produz estranhamento, leva a intuir, a buscar sentido. E nessa busca de sentido, fui conversar com o escritor sobre a obra. Ou, posso dizer, com o Xamã sobre aquilo que se manifesta e fala através dele. A entrevista foi marcada para as 15h30, mas começou apenas às 16h. A proposta era falar de Andara, essa transfiguração literária da Amazônia em metáfora da vida, criada, ou melhor, que se fez criar, por Cecim. O pretexto são os trinta anos de publicação de A Asa e a Serpente, primeiro livro visível do grande livro invisível que é Viagem a Andara. Sentamos em um daqueles bancos no corredor principal do Instituto de Artes do Pará - e quem conhece o IAP pode reconstituir a imagem. Ele acende um cigarro. Um pássaro canta. Eu começo a perguntar. As respostas se alongam e, em certo momento, já não me vejo tão necessária ali. Passo apenas a ouvir. Melhor: Andara é autora de si.



Juliana Maués: - Não sei bem se é uma pergunta que vais ter como responder exatamente, mas vamos a ela: como surgiu Andara dentro de ti?

Vicente Franz Cecim: - Parece que a maioria dos mundos literários, que os escritores criam, surgem bastante mais de fora deles que de dentro. Eles observam a vida e partem para uma transformação dessa vida em literatura. Alguns têm um mundo pronto dentro deles, que eles expõem, expressam, manifestam. A vida que eles observam fora desse mundo é meramente complementar. No meu caso, Andara realmente surgiu dentro de mim. Eu sempre estranhei as coisas ao meu redor. Logo, eu comecei a pensar que havia muitas coisas fora de lugar. As pessoas tinham hipocrisia e não respeitavam umas às outras. A própria vida em sociedade estava organizada de uma maneira que tinha muitas falhas. E veio de dentro de mim uma necessidade de propor uma opção e dizer: vamos assim, que assim é mais lúcido, é belo, é transfigurante, é mais verdadeiro. E havia muitas maneiras de fazer isso. Mas decidi me dedicar à literatura e criar uma vida paralela à vida, que é esse mundo de Andara. Foi o jeito de dizer o meu - Não e propor o meu - Sim.

Juliana Maués: - Todas as tuas obras literárias são situadas em Andara. Por que sempre em Andara? Por que não tentar construí-las em outro lugar?

Vicente Franz Cecim: - Porque tudo o que existe e o que não existe já está contido em Andara. Andara acabou incluindo a vida inteira: é um território oni-abrangente. Andara foi uma coisa mental criada por essa coisa que o Budismo chama de não-mente, que é aquilo que contem os conteúdos da mente. Imagina uma vasilha vazia. O que se chama de mente é tudo o que se coloca dentro dessa vasilha. Nós somos a própria vasilha. Então, Andara é uma espécie de grande vasilha, que contém todos os conteúdos da realidade visível e da realidade não visível. Eu percorro caminhos dentro de Andara. Os livros que eu escrevo estão dentro de Andara e não Andara dentro dos livros de Andara. Por isso, se chama: Viagem a Andara oO livro invisível: é o livro que não é escrito, o não-livro: você não toca, não pega, não rasga, não queima. E ele é feito dos livros visíveis que eu escrevo, que são os livros individuais de Andara, desde A asa e a serpente até o mais recente o oÓ: Desnutrir a pedra. Cada livro de Andara vai numa direção, busca uma coisa. Mas Andara, como um todo, ela já é todas as coisas, então não precisa buscar nada. Eu não posso sair de Andara, porque, senão, eu vou pra onde? Não há mais nada fora. E qual é a matéria-prima de Andara? Quer me perguntar isso?

JM: - Se quiseres responder. Eu estou aqui pra ouvir.

VFC: - A matéria-prima de Andara é a natureza, que é, pra mim, onde o sagrado se manifesta. Andara é uma Amazônia sem limitações geográficas ou de possibilidades. Coisas que acontecem em Andara, não acontecem na Amazônia. Em Andara, pássaros falam, anjos descem do céu e se apaixonam por mulheres, estrelas conversam com homens. Quando eu nasci em uma região que, além de natural, é mágica, libertada por mitos, foi mais simples ainda, compreender, que o natural é o trans-natural, vai além do natural. A literatura é transformar a realidade em verbo e tem a palavra como matéria-prima. Mas a matéria-prima sobre a qual a palavra trabalha é o real: o real imaginado, o visível, o invisível. Andara é a Amazônia como metáfora da vida inteira. Andara surgiu também com a intenção de dizer que a literatura é um verbo revelado, que se expande e que agora, na segunda metade do século XX, tem liberdade plena e, pelo menos eu, vou fazer uma literatura que tenha toda essa liberdade que ela conseguiu atingir. E a linguagem de Andara para construir isso tudo não podia mais ser a linguagem da literatura convencional. Andara é uma literatura de vanguarda. É algo que realmente está adiante do nosso tempo. Mas está adiante num sentido maravilhoso, que é o de retornar às origens. Andara busca o primitivo, o simples, o verdadeiro. Existe o que o Budismo chama de Mente de Clara-Luz ou Rigpa. É a não-mente. É a mente livre de seus conteúdos: o grande criador, processador, que executou todas as coisas, mas que não está condicionado por essas coisas e nem se limita a elas, e se propõe a ser completamente livre. Andara tenta ser essa Mente de Clara-Luz, que reflita todas as coisas e não prenda nada, que seja sempre em movimento, como a vida é. Para isso, eu não podia ficar preso a nenhuma limitação literária: Por que você permite ao poeta que ele use a linguagem que ele quer? E por que o romancista, o prosador, tem que escrever em uma linguagem rígida? Não! Existe uma coisa chamada “escritura”. Andara vai ser feita como escritura. Escritura é: transformar tudo em verbo: contém poesia, prosa, imaginação, ficção, filosofia, mística, religião. Andara não pratica gênero literário, pratica escritura, em que cabem todos os gêneros. Andara começou no primeiro livro como um pequeno bairro abandonado, fantasma, na beira do rio, solitário e com um cemitério, onde só havia a morte, em A asa e a serpente. E foi se inflando, inflando, inflando. Já no quinto ou sexto livro, tinha acolhido todo o universo, visível e invisível. Ela não tem limite nem para terminar e nem ponto de partida. E todos nós somos seres de Andara. Eu sou um ser de Andara escrevendo Andara. Na verdade, eu não sou um autor. Eu sou um instrumento. Isso, que eu chamei de Andara, se manifesta através de mim e me diz: - Você não pode ser um autor, isso, nós não queremos; você tem que ser o meio. Através de ti, Andara vai se revelar. Aceitas? Eu me neutralizo ao máximo como aquele que cria e entro numa espécie de transe de inspiração. Deixo aquilo falar através de mim. Às vezes, eu passo tempos sem escrever. Eu sei que aquilo não quer falar. Eu não forço, não escrevo outra coisa, porque eu aceitei essa missão, de ser o porta-voz desse grande lugar que quer falar. E acho interessante ter sido escolhido. Grande parte da minha vida é devoção a gerar Andara. Ela se escreve através de mim: é autora de si.

JM: - Falaste um pouco sobre a idéia de escritura. Agora, qual o conceito de íconescritura e como ela chegou até a tua produção literária?

VFC: - Íconescritura é uma palavra composta da palavra ícone, que nós sabemos o que é - imagem, signo - e escritura, de escrita. Depois dos fenícios, se passou a escrever com o alfabeto. Mas antes do alfabeto, já tinham ícones. (...) Então, a literatura se faz de palavras. Da onde vêm essas palavras? As palavras vêm do silêncio, por que, para mim, tudo o que é vem do não é. A literatura nasce do silêncio e é, de certa forma, a voz do silêncio. Então, assim como todo visível nasce do invisível, toda palavra nasce do silêncio, todo ser nasce do não ser. O Ocidente diz assim - e Shakespeare ajudou a consolidar esse mal entendido ocidental: Ser ou não ser?. O Zen Budismo, oriental diz: Ser é não ser. O não ser existe como semente das coisas, mas não se percebe porque ele está no ser, no que nasce. Todo escritor tem momentos de esvaziamento, de fadiga, de desencanto, em que ele não lê; não escreve. No meu caso, é sempre mais grave porque, como eu estou à disposição dessa voz que quer falar através de mim, eu não posso falar sozinho. Eu tive, pelo menos, dois grandes momentos na minha vida em que eu simplesmente parei de escrever durante um ou dois anos. E aí eu dizia que eu tinha perdido a minha inocência e por isso não tinha mais direito de falar. E o livro foi ficando cada vez mais rarefeito de palavras e com muito espaço em branco. Aí, por volta de 2000, o que eu escrevia, era mais da metade de páginas em branco - silêncio, vazio e páginas em branco. A palavra sumiu, desapareceu. Mas eu sabia que algo queria continuar falando e eu é que não estava sabendo como manifestar isso, que não era mais nem através da escritura. Era através de outra coisa: de uma maneira mais pura ainda. Mais pura é antes das palavras, então antes dos fenícios, antes do alfabeto. Então, surgiu uma forma de escrita, que era feita de imagens e palavras: Íconescrituras. Escrituras de imagens com palavras. E saiu um livro enorme, como se estivesse tudo guardado há muito tempo. Esse livro, eu chamei de K O escuro da semente. Então, escrevi o oÓ: Desnutrir a pedra, que saiu agora, e há outro livro em íconescritura, que eu não publiquei ainda: Breve é a febre da terra. Agora, eu voltei a escrever com palavras. Tem páginas em branco, mas com uma espécie de musicalidade. Como uma música que, às vezes, fala, às vezes faz silêncio, soa baixinho, soa alto. As pessoas perguntam quem é a minha maior influência literária. É Johan Sebastian Bach. Porque eu componho com um sentimento musical. Em alguns momentos, eu tento escrever uma ária; em outros, se faz um adágio, uma fuga, um contraponto. Tem momentos em Andara, que tudo se acelera: uma aceleração de acontecimentos, da linguagem e, de repente, uma suspensão, e cai esse movimento num vazio, e começa a falar baixinho, falar pouco. Eu nunca quis escrever literatura porque tinha as limitações dos gêneros. Eu sempre achei que a palavra devia ser o verbo: livre, livre, livre - pra ir a qualquer lugar. E o verbo se fez carne. E a carne falou através do escritor. Esse verbo não é o verbo humano. É o verbo que fala através do humano. Essa é a palavra literária. Não é a do dia-a-dia, da utilidade. É uma palavra que transfigura: palavra mágica que recria o mundo.