18 de junho de 2009

BEM-VINDO A ANDARA: Foed Castro Chamma





O Pássaro Curau dá as boas-vindas em Andara
a Foed Castro Chamma, autor de Pedra da Transmutação. VFC



O SER E O REAL



Foed Castro Chamma




Entre o Ser e o real medeia o pensamento, cuja dimensão é a de um vôo inimaginável. Funde-se ao pensamento a energia criadora de que é composta, em primeiro plano, a imaginação. O paradoxo da negação é análogo ao fogo, à água, ao ar, à Terra, que se move em torno do Sol. O pensamento ao deslocar-se é uma faísca do Sol, cujo raio fertiliza os elementos.
Que é movimento senão pulsão e encadeamento da energia que fertiliza a terra, da qual nasce o homem e evolui em sua química, reabsorvendo a água e o ar que gera o som e produz a voz, a palavra? A negação produz o movimento que reveste de som a imagem, matéria de luz em extensão e realidade como o pensamento.
Ar, água, fogo, terra correspondem a princípios que se opõem, afirma Empédocles de Agrigento. Onde a negação espelha o real desencadeia-se o nexo da sombra tal um duplo a ocultar o Ausente, que se recolhe à medida do real como fulguração do raio a plasmar o encontro do eu espelhando a imagem concentrada na imaginação e transformada em realidade. A imagem organiza-se com o movimento que desata o nó da negação, vinculando-se à Forma. O dramático sentido da Forma configura a representação a emoldurar o discurso que corresponde à diferença voltada para a semelhança com um duplo. A representação do ser corresponde à Forma, cujo universo envolve o pensamento na contextura temporal do imaginário, a cujos meandros a sombra se recolhe sem desvencilhar-se do duplo ao qual subjuga, sendo o pensamento negação cristalizado nos atos, de modo a produzir a sedimentação de cenas reais quais clarões impressos no ar tal o mito na realidade. Enquanto negação o pensamento é "mergulhado no erro". A matéria do sonho tem na luz em movimento o raio como testemunha.
Duplo é o ser, duplo do raio como sombra na contradição dos opostos, cuja pulsão originária move-se em direção ao Sol, que une os opostos e os transmuda em identidade. A consagração do raio tem como espelho a luz, que ao Fogo corresponde, configurando a imagem, de cujo núcleo a realidade se desenrola delineando na pluralidade a igualdade, encobrindo tal isonomia o conflito da representação do ser.
Como diferença a realidade é identidade, implicando luz o simbólico enquanto espelho do ser, pois a imagem projeta-se de modo a incorporar-se à realidade. A contradição dos opostos tem como síntese a Identidade, que o sujeito celebra como agente retornante da representação do ser. Como síntese enantiomorfa do ser, do qual é expressão a Forma, encontra o sujeito na ação o sacrifício originário do conflito cuja causa é negatividade. Identidade e Diferença configuram o conflito ao nível dramático da representação do ser.
No duplo está a negação a espelhar na Semelhança a diferença. Tal relação corresponde ao descontínuo que o simbólico espelha, cuja sincronia corresponde ao juízo sintético em contraposição ao conceptual, ou julgamento analítico, que se desenvolve no plano da semelhança onde a Ordem e a Lei mantêm implicitamente a projeção estrutural do simbólico no sistema político e social, correspondendo espaço e tempo a composição embrionária que irá desdobrar-se na tripla relação originária do sujeito no Sistema.
Como desdobramento da negação a identidade subsume a dimensão isomórfica da lógica da razão, de maneira a organizar-se o sujeito sob a tutela do Logos como reflexo da estrutura embrionária, cujo canal remete à Identidade. O discurso desenrola-se de modo a refletir o eixo que configura, segundo Kant, a origem dos Códigos. No Apêndice à Crítica da razão pura Kant coloca no Cap. II da 2ª seção, §17 em relação à Tábua das Categorias, de Aristóteles, o princípio da unidade sintética da percepção como princípio supremo de todo uso d entendimento.
A representação do ser implica liberdade e necessidade a refletir a Ordem qual pressuposto da Lei que o pensamento, invisível, permeia como diferença na trilha obscura da representação, configurando a Identidade, pois a pluralidade sensível dispõe de liberdade na necessidade. O axioma filosófico se coloca como dialética da Identidade que a Lei impõe em relação ao fazer e aos fatos.
Segundo Aristóteles a pluralidade sensível (Cf. Tábua das Categorias) está no código da Natureza, cujas linhas geometrizam o ser na folha dos arbustos, na raiz das plantas, nas pedras, no curso dos rios, nos corredores subterrâneos onde todos os metais têm seus veios inscritos, ou à flor d´água. No Código estão as marcas, semelhanças e correspondências que Aristóteles observou, tal como o Número, legenda do múltiplo, de Pitágoras.
A Pessoa tem na natureza o desenho que se repete como inscrição e similitude. O ser é uno e múltiplo em sua diversidade. A Forma acolhe o ser nos atos como paradoxal projeção do que nega e imita. Análogo ao real na Forma o sujeito espelha a imagem, configurando o imaginário, pois na negatividade o sujeito é antes imaginação, a saber imagem a produzir o phaon, i.e. a fantasia.
A Pessoa tem como unidade a consciência a emergir da negação enquanto Identidade e Ipseidade, cujo sentido é o da igualdade nos atos. A Identidade é colocada na Crítica como de uso estético da razão. A conotação ambígua da Identidade configura por outro lado o uso prático da razão, deslocando-se os atos para o âmbito da produção, a qual corresponde a uma forma de linguagem interpretada pelos Estóicos como uma Ética. A síntese parmenidica (ser e pensar) concebe na ambigüidade Ipseidade e Identidade como Presença, o aqui e agora de uma translúcida consciência, que Kant coloca como positio.
Do uno à pluralidade sensível o descontínuo desdobra-se no continuum da representação a nível dialógico, o qual faz da imagem o fundamento do ser da linguagem a desdobrar-se dialeticamente em objeto de produção, configurando-se deste modo a unidade formal enquanto modelo da lógica da linguagem. As marcas e sinais são o duplo atento de espelhos da semelhança, cuja leitura implica a decodificação da linguagem que se oferece como metáfora e se apresenta como o Outro da representação do ser. O mergulho na subjetividade captura a negação como fundamento do ser que o Outro representa, sendo espelho do outro enquanto semelhança, onde o conflito originário se desata à medida que se torna simétrico ao real na Forma, configurando deste modo a Identidade.
Por outro lado, o exercício do espírito criador busca na representação o que se manifesta como crise caracterizada no conflito da semelhança que se desloca dramaticamente para a obra de arte, a qual reúne os estilhaços da personalidade que se reorganiza à medida que a obra progride e se consuma, transformando-se a prática do saber em Conhecimento.
Pesquisas no campo da lingüística aprofundaram a relação entre lingue e parole, adaptando melhor o uso da linguagem a experiência e invenção ao ordenar o lado subjetivo do discurso, cuja semântica envolve a lógica do simbólico em relação à linguagem empírica, de modo a configurar historicamente uma crise semelhante à que ocorreu após a Primeira Guerra Mundial, quando o Absurdo instalou-se na literatura européia. O niilismo de um Fernando Pessoa, um Kafka, um Camus prenuncia o "pós-moderno". O neo-expressionismo retoma o delineamento assimétrico da diferença na pintura, envolvendo o estruturalismo francês dividido entre a semiótica barthesiana e o marxismo de Althusser. Com a revisão da Gramática Jacques Derrida aprofunda em De la Grammatologie a "desconstrução" de vocábulos que a arqueologia do Conhecimento de Michel Foucault escava em relação às cinco similitudes analisadas em As palavras e as coisas, ambos coerentes com os pré-socráticos, cujos Fragmentos comprovam o sentido ontológico da cultura ocidental em direção à individuação, que Nietzsche desenvolveu em relação ao homem que se supera no laboratório da vontade de saber.
A certeza de que a ancestralidade recobre a herança genética como componente da Identidade e comemoração intrínseca na linguagem tem seu fundamento no exercício de captura do espírito criador de reminiscências sepultadas na memória que emergem do inconsciente projetando no discurso a simbólica mítica de um lado, e, de outro, as pesquisas científicas, matemáticas, que sofrem o agenciamento experimental da física do plasma, da ótica quântica, da bioquímica, da engenharia genéntica. O saber renova-se em experiências que avançam, desenvolvendo a dialética existencial de modo a esvaziar tensões com o uso terápico da Música e do Canto, ou a celebração dos jogos de amor, cujo encontro e vitória são retornos sadios à Natureza.
Reativando o procedimento sensorial, afetivo, lúdico, empírico, a invenção e a técnica são práticas que implicam a comunhão do ser onde a representação tem como fundamento o desdobramento racional na superação do conflito, onde a causa é a negatividade a determinar o esforço de autoconservação, implicando a priori o saber e o fazer.
A invenção traz como experiência o Conhecimento. A nível empírico, os atos correspondem à práxis do saber. Fazer/saber são os dados correlatos da representação cuja reciprocidade enantiológica corresponde à Arte e à Ciência em seu desdobramento tecnológico. A retomada do Expressionismo europeu "pós moderno" questiona o historicismo, assegurando à linguagem poética a função de matematização do conflito como instrumento de elucidação da diferença no campo a priori do saber enquanto experiência e invenção, de modo a corresponder o "pós-moderno" à contestação ideológica "de conteúdo crítico e dimensão utópica" que atende à pulsão originária da negatividade em detrimento do arquetípico fazer/saber, fundamento renovador da Identidade Cultural na trilha do pensamento parmenidiano que afirma o ser.
Ao prenunciar o caos e denunciar a utopia o "pós-moderno" escava os subterrâneos do saber e do Conhecimento, contrariando a tese da besta negra do desconstrucionismo, da hermenêutica, na busca do eu individual, cuja transcendência o físico tenta elucidar e o artista convive revendo a escolástica ao cumprir o destino do poema, que Aristóteles chamava de animal.
A linguagem poética é inesgotável ao abordar a lógica do simbólico cuja característica possui o sutilíssimo enunciado de uma equação que definiria o Todo-Uno, o Hen Panta anunciado por Xenófones de Colofão (570-528 aC), místico e filósofo grego. A suposição de que a linearidade do discurso ao projetar o ente na História esgota a prática do saber é um equívoco epistemológico que devolve à Forma o ponto culminante de uma linhagem que se desenrola do raio e ao raio retorna, cumprindo assim o ciclo do eterno retorno.
A Forma corresponde ao ser da linguagem, na medida em que o Signo se reveste da imagem ao sustentar com o símbolo a dualidade originária da negação do real. Forma é o estádio derradeiro de concentração e espelhamento da imagem, a qual por outro lado se deforma ao sujeitar-se à diferença, longe portanto do domínio da razão.
Enquanto concentração a Arte concebe dimensão que está além da máscara da representação a associar à Forma a imagem como agente do eu, que se desoculta na linguagem predisposto ao saber e, portanto, ao Conhecimento. O saber é uma realidade que os aedos utilizavam nas rapsódias como alegorias revestidas de Beleza e Verdade. O saber é a realidade sob a capa do Conhecimento que, ao lado da ciência, se transformou em tecnologia do saber ao robotizar a memória em função de um Acaso capaz de devolver o elo perdido da simbólica mítica com o esvaziamento da palavra, i.e o Mito. Ésquilo refere-se ao riso enumerável do mar. Tal é o saber: uma alegoria que desponta como metáfora para o Conhecimento. Análoga é a alegoria do herói, herança do convívio com os deuses, na Idade de Ouro, que se perpetua com a experiência cuja essência é a da Identidade Cultural que resiste aos desígnios críticos da História.
A necessidade de retorno ao real onde o ser perpetua-se na Forma é, paradoxalmente, a liberdade de produção do saber, do qual a Máscara é simulacro, que os Estóicos "delimitaram como de autonomia do sujeito, instituindo por analogia com a representação teatral essa metáfora que somos, a Pessoa." Cf. Jaa Torrano, Origem dos Deuses, Estudo e tradução, Massao Ohno-Roswitha Kempf Editores, p.58 e 59.
A Coisa em si, dada como inapreensível, converte-se em objeto de produção e identidade. É o sujeito da representação. Implicando a Pessoa simulacro da representação, o sujeito a configurar a duplicidade do ser, a pluralidade sensível engloba o mítico e o racional. Mergulhado no Nada enquanto representação o eu é o Ausente, relegado à fantasmática condição de Presença perdido na dualidade do Mesmo. O Outro é representação especular a refletir o real como objeto de comemoração do ser da linguagem.
Manifestações coletivas de grupos reivindicando individuação, autodefinindo-se em atividades artesanais, de Oficina, ou em Meditação, à procura da unidade interna através de exercício redutor da pressão interna que estilhaça a personalidade, são hábitos que se diversificam em atividades que vão do convívio em grêmio a esportes como natação, alpinismo, excursões. O convívio comunitário é uma prática que não dissimula a urgência da comunhão ecológica em face do avanço tecnológico. A ameaça nuclear induz ao estudo de filosofia, ao exercício da poesia, ao incauto uso de drogas como dúbia resposta à paz interna ameaçada. Tais procedimentos ocorrem de modo diverso, indefinido, sem que se dêem conta da qualidade de vida que buscam. Em muitos a prática social é a das antigas confrarias onde o mestre é aprendiz e companheiro. A opção estende-se do teatro à cerâmica, à gravura, a trabalhos com o cobre e outros metais, ao acampamento, à dança, ao canto, ao exotismo do traje e mesmo ao nudismo, segundo a exaltação e alegria de viver. As atividades ampliam-se, chegando a grandes concentrações esportivas nos estádios e no campo com o rock´n'roll atingindo quase todas as categorias sociais entre os jovens. Tal expansão coletiva corresponde à vitória íntima que o indivíduo procura na esperança de aplacar a crise emocional que o assalta de modo sorrateiro.
O conflito produz o vazio demarcador da alteridade. Vulnerável, o sujeito encoberta o eu como a ocultar o pensamento que através do Sentido o faz mover-se no abismo insuspeitado da negação, colocando-se dessa maneira entre a razão e a desrazão.
A substância mineral do ser contém no sangue o Fogo que o pensamento resume no raio a avivar a memória, a espelhar a realidade, recriando assim o mundo que reproduz com a imagem a Voz, que aviva o mito. Integrando a dualidade na linguagem a imagem espelha o pensamento, completando-se sua extensão nos f(ato)s. A representação do ser desdobra-se da lógica do simbólico à concretude dos atos, os quais se desenvolvem revestidos da matéria do sonho que funda a realidade como moldura da representação. A memória agencia a linguagem através da palavra que atravessa a negrura luminosa do pensamento ao produzir a matéria de luz do sonho que se transforma na figura de contornos fugidios do duplo, de movimentos curtos, ligeiros, breves como o tempo, que desata do real a memória e a musa, filha de Zeus, recolhe. A Forma que lhe dá corpo na fuga por galerias entre enumeráveis espelhos que se repetem e são iguais a labirintos é como a pedra acesa da palavra. Com a memória ilumina-se a negatividade e se transmuda no ser da linguagem. O pensamento concede à Forma a cópia que o movimento representa e estende à linguagem transfigurada pelo mito.
A forma é o ser da linguagem. Qual o sentido da negatividade em relação ao imaginário? Medeando a negação o conflito da representação produz o imaginário a emergir dos fatos, os quais correspondem ao conflito da semelhança, cuja carga especular ao deslocar-se configura uma obscura constelação, de imagens como um duplo, subjacente, cuja captura é obtida através da linguagem poética enquanto praxe do saber enriquecida pela simbologia mítica do imaginário de maneira a corresponder à lógica da razão.
Convocando os arquétipos da representação que atendem aos apelos do eu na queda, o sujeito mantém o empenho em furar as trevas da negação que, lúcido, atravessa, acendendo na floresta o incêndio que queima os sentidos. O imaginário esvazia-se à medida que o duplo é aclarado pelo exercício do espírito criador. Reduzido a sinais a nutrir o imaginário, o duplo transmuda-se na síntese que a linguagem captura, incorporando-se o conflito à realidade do simbólico, de maneira a integrar o mítico ao racional, cujo empenho corresponde à prática do espírito criador, do qual o eu que permanece como diferença no abismo da subjetividade emerge, alinhando-se como artífice da fábula que reúne em sua circularidade a unidade, a qual se mantém entre dois campos e a linguagem comemora. Desdobrado em função de elucidar o mito e reorganizar-se, o eu incorpora-se à linguagem, correspondendo ao Fogo originário, o Logos, presente na figura especular do duplo como eco ou princípio orgânico, que se desdobra do sujeito e projeta-se como semelhança no imaginário e a linguagem recolhe como metáfora a configurar os sinais do duplo, objeto de leitura, que o espelho emite qual substância do pensamento e por fim transmuda em objeto do saber.
Sem deter-se no esforço de desvelar o que o duplo representa enquanto simulacro a imitar o verdadeiro, sem considerar a estranheza de que é possuído diante do Análogo, na revelação que faz, sendo em si mesmo o duplo e o outro do outro, o eu transforma-se e se constitui em caçador de si na fuga. O Fogo é matéria transfiguradora a delinear a realidade originária da negação, que mantém desperta a centelha do pensamento iluminando o abismo que conduz na queda o eu ao encontro de si na fuga cujo caminho, trevoso, acumula a contradição dos opostos a dar origem ao conflito e confunde-se com o semelhante a espelhar a linha assimétrica, labiríntica, vertiginosa do pensamento.
Fundamenta-se o pensamento na negatividade como primeiro degrau da Identidade a acolher o eu na leitura silenciosa do que se nivela ao real, cuja relação com o ser tem na imagem o imaginário e no sujeito o senso estético da razão. O ser é o dado alegórico da Forma, que se coloca no plano da representação como Identidade, a qual não apenas corresponde à razão como também ao simbólico enquanto revelação intrínseca da diferença, anterior portanto ao que recolhe o pensamento, a saber o logos. Sua recomposição na linguagem é a da diferença transmudada em Identidade. A palavra é o mito que transforma a negatividade em iluminação e a linguagem comemora, como "a menina que namora o sol na água". A Forma converte-se em linguagem e objeto de comemoração, implicando a divisão no simbólico associado à Menina a evocar a alegoria fálica do Sol.
Como mito o duplo corresponde ao simbólico que se projeta nos atos de maneira a transformar-se em Identidade. O mito corresponde aos fatos. É referencial dos atos no sentido redutor da imagem como ícone que evolui na composição da Identidade.
Corresponde o mito ao duplo, implicando o cerimonial arcaico da palavra que, em princípio, revelava o que se convertia nos fatos, atos e fatos transformados em fábulas de heróis míticos ou deuses. De modo a corresponder o mito ao "feito e ao verdadeiro" na acepção de Vico, que diz na Ciência Nova ser a fala heróica do mito a da Semelhança. O mito é pois o ser da representação. Como espelho da semelhança serve (o mito) ao trânsito do verossímil transformado em metáfora, de maneira a configurar o duplo o que o ser é, a saber o Outro. O mito é o indicador silencioso da máscara a ocultar o pensamento, o qual corresponde como diferença ao simbólico que transcende a semelhança enquanto Identidade. Ao desdobrar-se da negação no ser e pensar o sujeito corresponde à Identidade. Pensar o real é conceber a dualidade na sincronia do pensamento que a linguagem comemora.
Enquanto complemento da Identidade o simbólico é a diferença a produzir o conflito da semelhança, e agenciar por outro lado o imaginário de modo a corresponder à negatividade, instância em que a linguagem poética promove a captura do simbólico, em cujo âmbito transparece a matéria do sonho encadeada à legião em Combate sob a trama do imaginário.
O simbólico corresponde à diferença em relação ao que o pensamento nega, a saber o real. Opondo-se ao real o sujeito perde-se no labirinto de espelhos da semelhança onde um é o outro do outro. Nesse sentido a captura do duplo anula a dissimetria da negação em relação ao sujeito de maneira a neutralizar no espelho o mítico ao tornar-se racional. Nesta condição o Ausente assiste a si próprio no espelho ao defrontar-se com o duplo. O exercício do espírito criador conduz à leitura do simbólico, o qual identifica-se com a legião incorporada ao imaginário, passando o duplo a corresponder ao observador neutro do conflito e sujeito concomitante da representação.
Ao recolher-se como imagem e símbolo na linguagem o duplo é em si a fulguração do raio que se delineia como sombra em palavras e números, representando unidades estruturais cujo teor mítico e/ou racional corresponde ao juízo sintético ou analítico, respectivamente, os quais são componentes da matematização do simbólico realizada com a leitura do conflito.
As letras e os números são fulgurações simbólicas codificadas de maneira a servir de nexo da linguagem em incursões sisntéticas do saber que se transforma em engenharia do acontecimento, correspondendo a uma arquitetura inesgotável, tal a torre de Babel que, ao acumular línguas, guardava em sua origem o eu.
O significante é o eixo da linguagem e núcleo da representação do ser. Na construção da torre ao estender-se à procura do significado o eu se voltou para um horizonte que correspondesse ao significante e encontrou o duplo, em cujo âmbito observou o conflito da semelhança. A torre de Babel é uma alegoria da unidade, pluralidade e totalidade. O Signo tem sua correspondência vocabular na linguagem que o pensamento acompanha como substância em extensão de imagem e símbolo. O pensamento desdobra-se portanto na realidade. A contingência temporal configurada no drama em que se delineia o conflito da representação projeta-se na figura do duplo. O Outro é o duplo de um eu que armazena no imaginário o discurso do simbólico, cuja lógica se submete à interpretação e reconhecimento do duplo a aplacar o pensamento que espelha a produção do sonho no imaginário, carregado pois do estigma da negatividade que retém o Outro voltado para o Sentido a delinear o duplo.
Com a negação se cumpre o rito da representação que a lógica do simbólico permeia ao configurar o imaginário, a cuja interpretação o sujeito se volta compondo alegorias que refletem o duplo, desfrutando o eu a magnitude emblemática de observador, de modo a capturar o que se delineia na sincronia do simbólico. A defrontação do sujeito com o duplo é obra do imaginário.
O estigma da negação corresponde à emulação do duplo, que se estende com a representação aos graus da realidade, ocupando o espaço como espelho do Outro. Artífice da duplicidade o pensar é o aditus maligni do ser a transitar por dimensões insuspeitadas, onde Phaon é a máscara da representação. O que se presenta é a imagem indicadora do símbolo, emblema da memória, portanto o duplo enquanto categoria estrutural desdobrada da unidade embrionária a configurar a relaçãoa tripla projetada na oração, a qual configura a alteridade que corresponde ao ser e pensar, que Heráclito via como ignem aeternum ou fulguração do raio.
À linguagem corresponde o drama que se desenrola da diferença, erigindo-se em representação a desdobrar o múltiplo na totalidade recriadora do conflito como potência da vontade, da qual o pensar é a causa a se projetar nos estilhaços da contradição dos opostos, que o pessimismo de Anaximandro (610-547 aC) concebeu como Justiça (dikia) e, no Latim, passou a corresponder a dico, dicere, i.e o falar transformou-se em virtude no sentido de honra.
Como matéria do sonho o pensamento produz a realidade, permanecendo Ausente o eu como intérprete da representação. Antítese pois do real, o pensar conduz o fulgurante raio, que dirige o curso das coisas. Cf. Heráclito, Fragmento 64 D.K. O pensamento é o centro dos pares de opostos no drama cosmovital que produz cintilações obscurecidas pela razão, revelando cenas ligeiras de figuras ignotas que reaparecem como invenção e são coladas à realidade pelo Sentido. O imaginário urde a negatividade, revelando imagens que se nutrem de maneira a reatar os estádios da representação que se repetem nos (f)atos, onde o fugaz é capturado, o que advém da treva do sonho, e estende-se ao cenário de luz que a realidade ordena como Identidade. Cristaliza-se pois a Identidade na implicação temporal do que produz na duração o continuum a encadear os opostos. Ao ser corresponde a linguagem que atinge a babélica condição do trigo que se transformou em alimento. O pensar reveste-se da Forma na linguagem através da máscara que o som atravessa qual matéria de luz da qual se nutre, tornando-se o ar o fogo invisível exposto à análise, à observação. O fogo é substância cuja fulguração faz crepitar a imagem como chispa que anima a realidade reativando a representação do ser. Produz as figuras que mascaram o conflito, sendo o eu o intérprete de si mesmo, projetado no Outro, que se conduz de modo a reproduzir-se na negatividade como o duplo.
A negação produz o movimento de sombras que evoluem do sonho para o plano concreto da representação onde os atos configuram o espelhamento do Outro, a cuja dualidade o sujeito se volta subsumindo a contradição que se renova na trama do imaginário desdobrado da negação e projetado no duplo, onde o gesto é contrafação, tal o simbólico, contrafação do ato e elo de uma cadeia de negatividade a encerrar a Möira ou Destino. Tal é a trágica configuração do ser que o pensamento encerra enquanto substância e extensão.
A representação tem nos atos a dialética do ser, implicando determinação o produzir-se o eu como sujeito ou Consciência de si, lá onde a dissolução do imaginário que se dá na linguagem encadeia o plano da razão. Os atos são instâncias derradeiras da Identidade. Os componentes metafísicos a ela se incorporam na medida em que os atos são o corpo simbólico da representação que se completa como Identidade. Tal leitura corresponde por outro lado à decodificação do que configura a ambigüidade da representação que se transmuda em Identidade.
Como projeção formal os atos correspondem ao ser da linguagem. O gesto, a fala e os atos são sinais, cuja leitura dá a medida do pensamento, produtor de tempo e linguagem. O sonho configura tal projeção, cuja interpretação reata os vínculos intemporais do ser. A dimensão do sonho é a mesma encontrada no espelho. O que se observa não se toca, sabe-se ali e desaparece na intangibilidade de si mesmo, inconsistente e abstrato, igual ao pensamento, que some e reaparece sem estar em lugar nenhum. De ubíqua condição, o pensamento é representação e espelho a refletir a Forma que possui a configuração da Semelhança e dá corpo ao pensamento, petrificando-o, i.e consumando o corolário da negação.
Enquanto diferença a projeção nos atos encerra o périplo do pensamento, do qual o sonho é a revelação do ser a perpetuar-se na realidade. Os atos concentram a reciprocidade de uma relação que culmina como Identidade e revelação do que se projeta criticamente como representação, correspondendo ao entis rationis, cuja denominação se constitui em grande problema, segundo Heidegger, para a Fenomenologia.
A Pessoa oscila entre a dissimetria da diferença e a Identidade, permeando a lógica predominante da razão, sob o julgamento da consciência que discerne a tensão dos atos, o sacrifício implicando superação, elevado à contingência mítica da linguagem em níveis que vão do entusiasmo à dor no desdobrar do sonho à realidade, cuja fulguração pertence à Möira a conduzir o ser do ente. A interação da Forma a espelhar a imagem recompõe o imaginário, cuja plenitude configura o drama metafísico, a angústia existencial decorrente da finitude. A Máscara é a medida da tragédia, cujos contornos possuem a harmonia feita da tensão do arco, como diz o Frag. 51 D.K.




Tarkovski: Através de uma fina película transparente


Vicente Franz Cecim











O Sacrifício, de Andrei Tarkovski





Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus. Henri Bergson/ A intuição filosófica


De certas obras de arte devemos nos aproximar com passos tímidos de aprendizes de viver. E sendo inúteis as aproximações frontais, pois mais as ocultam de nós do que as revelam, só quase nos resta a opção de um tatear no escuro a sua luz, de um esboçar balbuciante a sua compreensão. O Cinema de Andrei Tarkovski é uma dessas obras assim. Nos excede. E tudo o que dissermos dele ainda será insuficiente. Diferente é a experiência de nos iniciarmos diretamente em seus filmes. Quando sós, face a face com eles, sempre nos falam com ampla generosidade, se entregando profundamente, em retribuição ao nosso silêncio. Respeito e prudência, ao falarmos deles, então se impõem. Deixar que eles se digam. E, previamente, apenas deles falar por alusões. A alusão aqui eleita é a frase acima de Bergson sobre Berkeley, que nos remeterá à própria idéia central do pensamento de Berkeley mais adiante. E assim, passo a passo, quase sem nos darmos conta disso, teremos dito algo sobre o cinema de Tarkovski. Mas obliquamente: por reflexos de vozes ecoando em espelhos. A frase de Bergson já nos dá o exemplo: o hesitante parece-me com que ele a inicia é signo de humildade e aceitação das Incertezas. E, precisamente por isso, também se aplica ao cinema de Tarkovski. Aqui, a fina película transparente de que Bergson fala se referindo a Berkeley vem se fundir à fina película transparente que é um filme: sua película , sua matéria prima, esse Olho aplicado à epiderme do Real, destinado a receber as impressões que a vida - Ela, que no dizer de Heráclito: Ama ocultar-se - se consentir nos doar, nos consentir a graça de ver. Já haveria, num filme qualquer, Mistério em abundância para esse Olho mecânico, o olho da câmera, registrar, se visse apenas por si, isolado de toda presença humana. Tamanha é a Presença das coisas em si mesmas diante de nós, se dizendo a nós: Esse est percipi/Ser é ser percebido - nos diz Berkeley. E quando o olho humano vem fazer companhia a esse Olho mecânico, vem humanizá-lo , digamos assim, no sentido pleno das visões, intuições, carências, indagações, ilusões, possíveis saberes, esperanças, miragens, que fazem dele um olho humano, e se isso se dá não mais num filme qualquer, mas num filme de Tarkovski? Esse est percipere/Ser é perceber - nos diz Berkeley. Um filme de Tarkovski sendo então uma dessas raras oportunidades que nos são dadas pela Via Estética de confrontar - no sentido já dissimulado pelo uso mais ainda vivo na palavra, de colocar frente a frente - vida e homem, o percipi e o percipere , o percebido e o perceber. Bergson nos diz: Se 'percipi' é passividade pura, o 'percipere' é pura atividade. A fina película então é o elemento intermediador entre a epiderme do Real, que se entrega a Tarkovski em percipi , se deixando ser percebida, e lhe permite o ato de percipere , perceber e, o por ele percebido, nos revelar. Mas, a esta altura, ainda estamos falando da fina película que é um filme, ou imperceptivelmente já ingressamos no coração obscuro do nosso assunto: já nos surpreendemos falando da matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus? A ambivalência das palavras, ah: tanto nos naufragam como nos socorrem. E o que leremos a seguir, ao lermos a palavra doutrina , seja lido como sinônimo da palavra vida. Pois é implicitamente a ela, como visão de mundo de Berkeley, que Bergson se refere, quando nos diz: Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a imagem mediadora (...) - uma imagem que é quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase espírito, pois não se deixa tocar - fantasma que nos ronda enquanto damos voltas em torno da doutrina e ao qual é necessário que nos dirijamos para obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do ponto para onde olhar. É permitido ao homem, através da mediação da Arte, não somente percipere/perceber mas também dar a perceber aos outros homens o que, através da fina película transparente , percebeu? No cinema, em todas as épocas, a alguns isso foi consentido: Bresson, Ozu, Antonioni, Dreyer, mais recentemente a Alexander Sacha Sokurov e ao próprio Tarkovski. Diante do Abismo que é o Assombro de existirmos, humanos, face a face com a espessura e as transparências da Vida que nos habita e na qual habitamos, sutis como uma sombra, densos como um corpo, devemos ser gratos a eles, pela vertigem que em nós sempre despertam, pelas quedas para o alto em que sempre nos precipitam, nos impedindo de adormecer na desoladora fronteira que inventamos para nossas omissões, no passo que não damos, entre o Imanente e o Transcendente. Tarkovski entendeu o Cinema como a arte de Esculpir no Tempo . E no livro que escreveu com esse título, e não apenas através das imagens dos seus filmes, nos fala de uma urgência alarmante: - O homem moderno não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos poucos vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana. Que vocação é essa? A vocação de uma entrega total, de um consentir permanente que luzes lampejem em nós, nos permitindo ver - mesmo que por breves clarões, na vida como numa escura sala de projeções, sacrificando nossas consolações vazias, nossas paixões condenadas a cinzas, nossa avidez de um agora efêmero - aquela que ama ocultar-se e que, em seu Pudor, é a Fonte permanente do nosso mais intenso fascínio? Clarões. Ainda que estonteantes, cegantes. Mas de uma cegueira que nos liberte de continuar vendo através de um cristal escuro e nos conceda outros olhos capazes de ver através dessa fina película transparente situada entre o homem e Deus - sabemos o que essa Palavra significa, em todas as suas metamorfoses. É esse o olhar que reivindicava Berkeley, segundo Bergson. E esse é o olhar que buscou Tarkovski, com seus filmes que são fendas abertas na espessura da matéria, e que ele, também, reivindica, quando afirma: - E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade? Ou quando denuncia: - A moderna cultura de massas (...) está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual. São palavras que devemos manter acesas em nós quando as luzes se apagarem e os filmes de Tarkovski começarem a cintilar para os nossos olhos. Nesses Templos de um tempo sem templos em que podem se transformar as salas de projeções, ante filmes como os de Tarkovski, já não se trata de simplesmente ver, mas de penetrar profundamente, através da fina película transparente que o seu cinema nos oferece, até nos revelarmos a nós mesmos, e orando em silêncio:

- Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos.

ENTREVISTA Vicente Franz Cecim: O natural é sobrenatural


Por Márcia Carvalho







'Tudo vem como sombra do Um e para o Um volta como sombra. Aqui, na breve Residência, a vida, imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos, as sombras estão no Vários, e se tornam coisas'. Vicente Franz Cecim/K: O escuro da semente


O escritor paraense Vicente Franz Cecim é um sucesso de crítica, no Brasil e em Portugal, embora nem tanto de público, mas parece não dar a menor importância para esse fato:



- Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida. Os especialistas atribuem isso às características inovadoras da sua literatura. Segundo já foi dito, no caldeirão de uma escrita em absoluta liberdade, a literatura como alquimia, em sua obra o autor abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural e incorpora o profano ao sagrado, para se lançar numa intensa busca metafísica do sentido do ser e da vida. Cecim, por sua vez, diz que os livros visíveis de Andara, que escreve em livros, ainda podem ser lidos como literatura fantástica. Mas ao irem se reunindo em Viagem a Andara, o livro invisível - que é o título geral de toda a sua obra - o não-livro que o autor não escreve e que vai se formando à medida que os livros individuais de Andara vão sendo escritos, o resultado final, segundo ele, já é literatura fantasma. Nesta entrevista, Cecim fala do seu novo livro recém-lançado em Portugal, Ò Serdespanto (Íman Edições, Lisboa, 2001), que a crítica portuguesa apontou como o segundo melhor livro do ano, em consulta feita pelo jornal Público, da Amazônia transfigurada em Andara, dos limites da literatura e do advento de uma literatura fantasma.


- Já não faço literatura, faço Escritura, ele diz. E afirma: - O natural é sobrenatural.


O que é o livro Ó Serdespanto, ou talvez fosse mais apropriado perguntar: o que é um ser de espanto?


Cecim: Serdespanto sou eu, és tu, é quem está lendo esta entrevista. Seres de espanto somos todos nós. Não é difícil ser um serdespanto, para isso basta nascer, surgir na vida como ser humano. Um trecho do livro nos diz assim: Em Andara, é quando os homens esperam um anoitecer mais calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras e asas de areia vêm nos açoitar. Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar assim. Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros, humano.


Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto: ser de espanto. A expressão Ó, por si só, já demonstra sentimento de espanto.


Cecim: O livro Ó Serdespanto já acabou de se falar, por si próprio, nesta entrevista. E um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito, é preferível não falarmos mais por ele.


E Andara, o que é Andara?


Cecim: Andara é uma região imaginária, toda ela onírica, que eu criei, ou que quis se criar através de mim, de qualquer maneira: que eu sonhei, mas sua matéria prima é a Amazônia, a Floresta Sagrada onde eu nasci, com suas águas, seus peixes, suas aves, seus insetos, seus animais, suas árvores. Só que em Andara tudo pode acontecer e ainda mais do que acontece na Amazônica, que em si já é uma região naturalmente encantada: árvores podem falar com os homens, aves que caem do céu se transformam instantaneamente em terra, retornando ao pó, o vento vem nos contar histórias, tu podes te deparar com uma mulher alada como Caminá, do segundo livro visível de Andara, Os animais da terra, há muitos outros seres alados em Andara, talvez anjos ou sejam demônios, que descem do céu com suas asas negras, com suas asas brancas para conviver com os seres humanos. Também é grande a presença de serpentes em Andara. Pois o que está no Alto é como o que está Embaixo, como disse Hermes Trimegisto. Andara é lugar de sonhar, em Andara tudo é possível, Andara é a imaginação em liberdade, Andara quer abolir a razão do ato de escrever. Andara é quase um manifesto prático contra a literatura regionalista, mimética, que geralmente se limitava a copiar, e copiar mal, a realidade amazônica. Mas a realidade é oculta em si mesmo: se disfarça em sua epiderme. Fazer literatura assim é ampliar o ilusório. Heráclito, que entendia dessa Obscuridade, já nós advertiu há quase 25 séculos atrás: - Vida ama ocultar-se. Andara quis romper, desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, com essa tradição que quer nos reduzir a criadores de uma literatura superficial, anedótica, supérflua, com raras e parciais exceções. Quais? Só cito nomes quando chegar o Dia do Juízo Final, então os bons serão separados dos maus, segundo as Escrituras. Por enquanto, digo apenas isso. Escrever, sonhar os livros de Andara foi uma opção muito solitária, e do que havia sido escrito aqui na Amazônia, pelos escritores cultos, chamemos assim, eu não me nutri de quase nada. Meu único alimento foi a literatura oral, as lendas, os mitos, que aprendi desde criança a admirar através da minha mãe, Yara Cecim, hoje também escritora, que nos contava, não os contos dos irmãos Grimm, de Perrault, que tem coisas geniais, de Andersen, que é todo ele um gênio, mas umas histórias delirantes da região, para nos fazer dormir, a mim e aos meus irmãos. O sono vinha, mas como um portal de acesso a todo esse mundo feérico. Não sabíamos mais o que era natural e o que era sobrenatural.


Ó Serdespanto faz parte de um longo projeto literário, que é Viagem a Andara, o livro invisível. Livro que contém outros livros, que são histórias imaginárias fisgadas de uma memória guardada da infância, vivida na Amazônia. Andara é uma história infinita?


Cecim: Não se pode dizer que essa Andara que se criou através de mim é a Amazônia, não é a verdade. E dizer que a Amazônia é Andara, também não é a verdade. Não há uma verdade única nesse caso. Onde está a verdade, então? Se tu olhares com olhos de alquimista, que são os únicos que interessam, vais perceber que o que se dá é uma transmutação: a Amazônia é a matéria prima, Andara é o resultado. O que sobra, fica de fora: é o que os alquimistas chamavam resídua. A transmutação da Amazônia em Andara deixou muita resídua, material imprestável para literatura. E como em toda a Alquimia, e a alquimia da criação literária não é diferente, para entender o que acontece é preciso compreender estas palavras de Raimundo Lúlio: Deves saber, meu filho, que o curso da natureza é transformado, para que tu (...) possas ver, sem grande agitação, os espíritos que se evolam (...) condensados no ar, sob a forma de diversas criaturas ou seres monstruosos que vagueiam de um lado para o outro como nuvens. São palavras misteriosas, mas não há outras melhores para se iniciar na transfiguração da vida pela arte. É por isso que, como eu disse: Andara é lugar de sonhar. E eu digo: A viagem a Andara não tem fim. Porque depois de mim, outros, que vierem, poderão dar continuidade à viagem a Andara e habitar seu território, com outros livros, outros sonhos, outros seres de espanto.


Os críticos têm sido generosos em elogios aos livros de Andara. Leo Gilson Ribeiro, em entrevista a O Estado de São Paulo, após o lançamento de Viagem a Andara, o livro invisível (Iluminuras, 1988) que lhe valeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA, disse: "Quem escreve como Vicente Cecim hoje em dia na França, na Inglaterra. Ele tem um talento desmesurado." E por ocasião do lançamento de Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, 1994), completou: "A fulminante trajetória literária de Cecim, que se iniciara com o belo, poético e enigmático poema em prosa Viagem a Andara, o livro invisível, prossegue com um livro, se possível, mais rico e fascinante ainda: Silencioso como o Paraíso. Um dos mais perfeitos livros surgidos no Brasil nos últimos dez anos, imbuído de poesia, encanto e o que Guimarães Rosa chamava de ‘peregrinação álmica’ (da alma)." Não foi a primeira vez que os críticos evocaram Guimarães Rosa ao falarem da sua obra.


Cecim: Muito me alegra a sua companhia, mas é evidente que se há ecos dele em Andara, são desprezíveis. Guimarães Rosa é infinitamente superior a tudo o que foi escrito em ficção na língua portuguesa, incluindo Clarice Lispector, a enfeitiçadora de palavras, e o Machado de Assis daquele inacreditável, lunar, Memorial de Aires, escrito, já no fim da vida, com uma serenidade encantatória assombrosa, como se diz que o arqui-anjo Bach compunha as suas últimas obras.


E ao que você atribui essas aproximações que fazem da sua obra com Guimarães Rosa? E isso em vários pontos do país. Por exemplo, o crítico gaúcho Antônio Hohlfeldt, no Correio do Povo, escreveu: "Depois de Guimarães Rosa, o paraense Vicente Cecim é o responsável por um dos mergulhos mais fantásticos e essenciais que a literatura brasileira já realizou sobre o sentido do homem." E Oscar D’Ambrosio, no Jornal de Tarde, de São Paulo, não deixou por menos: "Ler Viagem a Andara é penetrar em narrativas poéticas subversivas e míticas que trazem à tona, sempre renovado, o aforismo roseano: Viver é perigoso."


Cecim: Talvez seja é porque são literaturas de invenção de linguagem, ou porque minha escritura tem a mesma má intenção da de Guimarães Rosa: abolir as fronteiras artificialmente demarcadas entre a prosa e a poesia. Mas, talvez, principalmente, porque Rosa fez com o Sertão a mesma coisa que eu estou tentando fazer com a Amazônia: transmudar, ele, o Sertão, eu, a Amazônia, no que eu chamo de regiões metáforas da vida.


Você já anunciava esse seu projeto em Flagrados em delito contra a noite, o Manifesto Curau que lançou em 1983. Nele, você dizia: Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar. Falo do Sertão de João Guimarães Rosa. (...) Em sua geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, mais ainda, soube transformar esta região numa metáfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região.


Cecim: Logo o Flagrados em delito contra a noite/Manifesto Curau vai completar 20 anos de lançado (1983-2003), mas a sua Palavra principal, aquela que faz uma auto-acusação grave, pois nos acusa de sonharmos pouco ainda que vivamos numa região em si mesma naturalmente onírica, pouco foi ouvida. Praticamente quase nada mudou desde então, nesse sentido. Assim como a literatura de Andara, que logo chegará aos seus 25 anos de invenção (1979-2004), semeou muito pouco do que pretendia com sua Presença, mas aqui provavelmente a culpa é minha: eu apenas consigo fazer um esboço do que poderia ser a invenção de Andara. Por isso, aguardo pelos que virão, que sejam melhores dotados. Poeticamente, politicamente, insisto no que foi dito no Manifesto Curau: - Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.


Você se empenha nisso em sua literatura, pelo que se vê nos seus livros.


Cecim: Mas não é só na literatura, também na vida, que mesmo oculta em si mesma sempre nos permite entrever que é sempre mais secreta e mais bela que a literatura: a Literatura quer a amplidão, a ampliação e provoca estranhos milagres nas fronteiras das impossibilidades da Vida, mas é precisamente nela, vida, vivendo, nos vivendo em nós, e certamente também escrevendo, que se corre o risco de obter a Revelação essencial: a de que o natural é sobrenatural e sua versão refletida num espelho: a de que o sobrenatural é natural. Essa consciência é o alimento, o Único, que devesse nos nutrir enquanto seres e enquanto criadores, e o que dá sentido à literatura.


A crítica parece perceber bem isso nos seus livros. E já há algum tempo. Mais uma vez aqui citado, Leo Gilson Ribeiro, por exemplo, escreveu uma página no Jornal da Tarde de São Paulo após o lançamento das suas primeiras obras, intitulada O universo de Vicente Cecim criado por inspiradas metáforas e alegorias, em que dizia: "Há um real submerso no homem que a literatura linear, de mera denúncia da disparidade social, não alcança e quase como o grande visionário, o poeta Novalis, Vicente Cecim também confirmaria que je poetischer, umso wahrer: quanto mais poético, mais verdadeiro."


Cecim: Essa comparação com Novalis, um poeta sublime, me deixou atordoado por alguém tempo, sem conseguir escrever nada. Foi um exagero do Leo Gilson Ribeiro. Mas enquanto declaração de princípios, sim: é isso mesmo o que busco e no que creio.


Mas não é só ele. A revista Vogue também disse: "O lírico, o fantástico, a imaginação em sua total liberdade: a linguagem de Cecim é poética e única." E Benedito Nunes, escrevendo sobre o seu livro Os animais da terra, disse: "Uma invenção poética. Que melhor denominação para este texto libertário, insurrecto?"


Cecim: Sim, mas o preço de ter feito essa opção por uma linguagem que admite o poético e transgride e dilacera a camisa de força da prosa na ficção é bem grande.


E a alegria não deve ser menor. Por exemplo, o que você sente quando lê coisas como a que escreveu sobre a sua obra Carlos Emílio Correa Lima no Jornal do Brasil? Ele afirma: "É provável que seja a melhor literatura fluindo no Brasil." E há comparações entre você e autores que são verdadeiros clássicos modernos de várias línguas, como Nietzsche e Láutreamont, que deixariam qualquer escritor feliz, como a que faz Moacir Amâncio em O Estado de São Paulo: "Lembra Zaratustra e Maldoror e se esses livros são poesia, a prosa de Cecim não seria outra coisa. O fascínio sobre o leitor é permanente."


Cecim: O que não impede que curiosos desastres aconteçam. Por exemplo, o livro Ó Serdespanto, editado pela Íman, de Portugal, havia sido oferecido antes ao Samuel Leon, da Iluminuras, de São Paulo, que já havia editado as minhas duas reuniões de livros de Andara anteriores: Viagem a Andara, o livro invisível e Silencioso como o Paraíso. Samuel é um editor criterioso, que lê o que edita, eu sei. Mas às vezes não basta a vontade do editor: existe uma economia, umas leis de mercado editorial, uns vícios e umas estruturas mortas arqueológicas que se erguem entre o livro e o leitor. Samuel me falou algo assim, tentando me explicar o fenômeno: Estás escrevendo cada vez melhor, Vicente, mas nós temos um problema: os leitores brasileiros têm preferências muito rígidas, ou gostam de prosa ou gostam de poesia, e como nos teus livros estás cada vez mais abolindo essas distinções, eles não sabem do que se trata, acham estranho. Creio que Samuel estava certo, afinal, pelos anos de convivência, desde 88, já havíamos nos torna bons amigos. Entendi a mensagem. Foi como se ele estivesse me dizendo que os meus leitores ainda estão por nascer e me pedisse paciência. A paciência de ser póstumo. O livro finalmente saiu, mas saiu em outras circunstâncias culturais: Portugal não é o Brasil, que é grande e lê pequeno, Portugal é pequeno mas lê grande: lê esse abismo obscuro cintilante que é Fernando Pessoa, lê o poeta complexo que é Herberto Helder, lê as arriscadas aventuras de linguagem de Maria Gabriela Llansol e já é a Europa, aquela Europa a quem foi oferecida a libertação da Razão Maníaca pelo Dadá, pelo Surrealismo, onde a ficção que se lê é Kafka, Beckett, Proust, Joyce, o Musil incalculável de O homem sem qualidades, o Hermann Broch sonâmbulo de A morte de Virgílio, esse outro sonâmbulo que é o Bruno Schulz de Sanatório sob o signo da clepsidra e de As lojas de canela, o Julien Gracq supremo do alegórico O litoral das Sirtes, belo como um Kafka paralelo a Kafka, o Incomparável, o Dino Buzati também kafkiano a seu modo de O deserto do tártaros, o iconoclasta maravilhoso que é Withold Gombrowicz, o autor de Trans-Atlântico e de Bakakai, o Breton de Nadja, romance, poema, invocação xamânica e nada disso porque se trata da própria vida como realidade e sonho, juntos, captados para dentro das páginas de um livro, e sobre tudo isso seguem pairando as asas que jamais pousam para um instante sequer de repouso de Lautréamont, agitando aqueles ares com seu Os cantos de Maldoror - para citar só alguns dos mais recentes, dos mais próximos de nós. Porque se fôssemos mais longe, até Jonathan Swift, até Rabelais, até Sade, até John Bunyan, até Dante, onde iríamos parar?


Essas dificuldades levaram à edição do livro em Portugal e não no Brasil?


Cecim: As dificuldades aumentam na medida em que não só os livros de Andara, mas também os de outros autores brasileiros que não pactuam com as concessões do mercado editorial aumentam suas dificuldades para o leitor que não se doa suficientemente à literatura, talvez porque não ame suficientemente a literatura, talvez porque não ame suficientemente a si próprio, talvez porque não ame suficientemente a vida, não sei. Não é só viver que é muito perigoso, como disse Guimarães Rosa: escrever também é muito perigoso. Mas aqui, repara, temos um paradoxo: é preciso não esquecer que os livros de Andara foram publicados primeiro no Brasil, pela Iluminuras, com expressiva receptividade da crítica, e só depois é que saíram em Portugal. Como se explica isso? Teria a literatura de Andara andado rápido demais, deixando os leitores brasileiros para trás?
Emparelhou o passo com os leitores portugueses? Leitores mais qualificados: editores mais qualificados: escritores mais qualificados: essa é a seqüência em que as coisas devessem se dar. Podendo ser também na ordem inversa. Sem terra para construir uma casa, sem casa para morar nela, onde colocar uma estante de livros? Nós precisamos sentir uma Grande Fome de tudo, fazermos jejum até não suportarmos mais a nossa fome de uma revolução que dê às pessoas acesso ao feijão e ao sonho, palavras que fazem lembrar o título de um livro hoje quase esquecido de Orígenes Lessa.


Bem, e aconteceu que Andara, com o lançamento lá do seu Ó Serdespanto, acabou por ter, também, uma entusiasmada acolhida da parte dos críticos de Portugal.


Cecim: Foi, aconteceu.


O mais surpreendente é ler de um crítico tão bem informado, como o filósofo Eduardo Prado Coelho, esta declaração: "Aluno de História da Cultura Medieval, cheguei à prova oral sem saber quem era Raimundo Lúlio. Nas semanas seguintes, este nome aparecia-me em todo o lado - uma verdadeira perseguição. E pode ser que suceda o mesmo com Vicente Franz Cecim. Conheço razoavelmente bem a literatura brasileira, tenho muitos amigos brasileiros que me mantêm informado, mas nunca me lembro de ter visto mencionado, ou lido uma linha, de (ou sobre) Vicente Franz Cecim. Até que António Cabrita resolve editar um livro intitulado "O Serdespanto". E o espantado sou eu. Uma extraordinária revelação! Leo Gilson Ribeiro fala-nos, referindo um Guimarães Rosa que obviamente está presente nestes textos, em "peregrinação álmica" (da palavra "alma"), e a expressão está certa para nos dizer a estranheza, a perturbação, os momentos de arrebatamento que nos podem vir destes textos inclassificáveis, que oscilam entre uma espécie de deliberada monotonia do ser e o sentido golpeante das cintilações verbais."A citação foi um pouco longa, mas necessária para situar os leitores no impacto da reação do crítico.


Cecim: Isso só prova a enorme distância cultural que mantemos de Portugal. Só superada pela que mantemos em relação aos outros países da América Latina. Sabemos quem foi Borges, o argentino, pelo menos, mas observa a expressão remota, buscando longe um saber desconhecido, que aparece no rosto de um leitor brasileiro quando se pergunta a ele: quem foi César Vallejo? E Vallejo é simplesmente o maior poeta deste nosso subcontinente, em todos os tempos. Mas, peruano, coitado. E onde fica o Peru? Alguém sabe?


O problema, então, não está localizado unicamente na Escritura que você pratica nos livros de Andara, nem no próprio universo inusitado que seus livros visíveis de Andara estão criando. Existem graves barreiras culturais.


Cecim: Sim, muito graves. O surgimento de Andara, como território verbal onírico que escava o solo da realidade, para dela emergir, já que falamos de Borges, é como aquela hipótese que ele propõe sobre o Castelo de Kubla Kan: é algo que está tentando nascer, existir na vida, e já fez suas primeiras tentativas. A primeira, quando Kubla Kan sonhou o castelo em pedras e iniciou sua construção, mas foi impedido de concluir a construção e do castelo só restaram ruínas. A segunda, quando Coleridge sonhou o castelo de Kubla Kan em palavras, mas ao despertar, interrompeu o poema sobre o castelo para atender seu alfaiate, e foi punido, por isso, com o esquecendo do restante do poema, que também ficou inconcluso. Borges então se pergunta, nos pergunta: qual será a próxima forma que assumirá isso que se apresenta como o Castelo de Kubla Kan quando tentar mais uma vez irromper na vida? Talvez por ser também uma hipótese extraviada, um Lugar de Todos os Lugares, ou de Lugar Algum, Andara atravesse as águas do Atlântico sem naufragar.


Sim, mas as ondas que faz são bastante agitadas, quando chegam na praia. A crítica Regina Louro, que citou Ó serdespanto como o melhor lançamento do ano, em Portugal, escreveu no jornal Público: É um livro total, na sua fusão de poesia, prosa, viagem utópica, divagação onírica, pensamento filosófico, reinvenção da palavra e reinvenção do mundo. Uma obra assim pode transformar a vida de quem a lê, se quem a ler estiver disposto a deixar-se transformar; mas, mesmo sem correr o risco dessa entrega, é impossível permanecer indiferente ao poder mágico da palavra de Cecim, palavra livre e vagabunda que cria uma cosmogonia própria, a um tempo estranha e familiar, reconhecível. Chamar-lhe inclassificável é, talvez, cobardia. Há um nome para esta espécie - rara - de acontecimentos, mas é um nome ousado e, nestes tempos de suspeita, pronto a ser banido: estamos perante um livro sagrado. Não importa quem o escreveu: foi escrito por um visionário.


Cecim: Foi uma leitura vertiginosamente generosa.


E o que você diria do que escreveu o crítico, também português, Manoel de Freitas, no jornal Expresso? Cito alguns trechos mais expressivos: "Há livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lúgubre ofício da crítica. Livros que começam por dizer que «alguém vive, alguém escreve// Esse é o ponto de partida, o ponto de chegada». Alarmada, a nossa competência literária pode, quando muito, balbuciar o nome de Mallarmé e o seu maiúsculo projecto: «O Livro é a vida? Não, o Livro não é a vida. É a outra vida» (pág. 9). Mas permaneceremos incapazes de verbalizar o inconfundível fulgor desta obra de Vicente Franz Cecim. (...) Houve já quem falasse em Amazónias, transfigurações natais de um paraense, quando uma voz destas excede qualquer regionalismo básico. Também Herberto não é a ilha em forma de cão sentado ou Pessoa a Rua dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem. (...) São raros os livros que, como "Ó Serdespanto", elidem perguntas e respostas, abrindo-se à desmesura e à estranheza: «Benvindo ao estranho mundo» (pág. 129). Poderíamos, no entanto, esboçar (e não mais do que isso) a genealogia em que este livro entronca. Nesse caso, teríamos de evocar essa espécie de «comunidade» de que fazem parte os nomes de Michaux, Herberto Helder ou Maria Gabriela Llansol. Contudo, a escrita de V. F. Cecim não se confunde, prossegue «amanhedescendo» e torna subitamente mais verdadeira a certeza de que «não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo o dizer supremo» (Eduardo Lourenço)."


Cecim: E com isso voltamos ao início desta nossa conversa. Tu me disseste: Vamos falar um pouco mais a respeito de Ó Serdespanto. E eu te disse: um livro não sabe falar outra linguagem além daquela em que foi escrito. O respeito de um crítico pela integridade essencial de certos livros, é o que dele mais esperam certos escritores que se propõem a desafiar os dentes da Engrenagem triturante do mercado de consumo editorial. Escritores fantasmas: Literatura fantasma.


Você insiste em afirmar que o natural é sobrenatural. E novamente diz que o que faz é literatura fantasma. Você está fazendo só literatura, ou propondo algo mais: algo iniciatório? Você quer mudar a vida com os seus livros? Pelo menos o crítico Oscar D’Ambrosio, aqui no Brasil, muito antes da crítica portuguesa Regina Louro, achou que sim, e que você consegue isso. No artigo Os divinos autores da década que escreveu no Jornal da Tarde de São Paulo, ele garante: "Os textos de Cecim fundem profano e sagrado. Após ler Vicente Cecim a transformação interna do leitor é inevitável."


Cecim: Eu projeto à minha frente uma Utopia libertária. Eu sonho com uma literatura além da literatura, como Nietzsche sonhava com um homem além do homem. Por isso prenuncio o advento de uma Literatura Fantasma. Mas, antes, ainda teremos que deixar para trás a Literatura como hoje a maioria de nós, escritores, ainda a praticamos, e como a quase totalidade dos leitores ainda a lêem, e atravessar a ponte oscilante da Escritura. Então, depois, muitos passos ou não-passos adiante, ou atrás – pois tudo pode muito bem consistir em um mero se desfazer dos nossos lastros culturais - teríamos livros, ou já não-livros, como quer ser o Livro Invisível de Andara, algo que foi literatura, mas se libertou de si mesmo e se tornou capaz de revelar minuciosamente o homem e seu mistério ao mistério do homem: digo isso assim: A literatura praticada como ontologia, a palavra praticada como vida. Sonho com que esse algo que terá poderes mágicos, imensos poderes, capazes de transpassar as Aparências do Real. Nas desorientações em que me guio, e das quais me nutro, com outras bocas, menos e mais humanas, lembro do que disse Novalis: Só a insuficiência dos nossos sentidos nos impede de perceber que vivemos num mundo feérico. Para mim, e não só os artistas, os criadores, também todas as pessoas, não devemos nos contentar com menos. Isso me faz lembrar John Coltrane, que queria fazer milagres com o seu sax através do jazz. Ele disse uma vez, pouco antes de morrer, que eu prefiro chamar de fenecer assim como prefiro dizer florescer em vez de nascer, que queria fazer uma música – que, também, estaria certamente além da música - que quando um amigo estivesse desempregado, ele tocasse e o amigo teria emprego, que quando alguém estivesse doente, ele tocasse e a pessoa ficaria curada, que quando estivesse chovendo, ele tocasse e fizesse sol.


Assim, o Serdespanto não sentiria tanto o espanto de nascer.


Cecim: Assim, finalmente, nos pudéssemos ser Seres de Alegria. E contaminar a Vida não mais tanto com as nossas lágrimas, mas com essa Alegria.

Você está terminando de escrever um novo livro visível de Andara: K: O escuro da semente. Todo desenrolar literário, que faz parte de um só projeto, tem lá seus níveis, seus estágios. Em que estágio está esta nova obra, se é que devamos classificar assim, ou mesmo classificar?

Cecim: Para que classificar, o que se ganha com isso? Já classificamos os insetos, as pedras preciosas, os sentimentos, os gêneros literários. E o que ganhamos com isso? Só dividimos mais o mundo, a vida, cada vez mais a extraímos do Um e a lançamos ainda mais fragmentada no Vários. Este livro, agora, prossegue as buscas de Andara, que já vinham sendo feitas, seguindo rastros apagados, esquecidos pela espécie humana, muito inconsciente desde o primeiro livro, A asa e a serpente, de 1979, o que agora me parece se fazer cada vez mais claramente, pelo que eu chamo de O Um Vários: ponto de fusão de todas as dualidades. Onde todas as aparências cedam profundamente a uma Unidade, sem exigir que o real abra mão de sua Diversidade. Dobras dentro de dobras, ora se desdobrando, ora se redobrando. Isso é a Viagem a Andara, isso é o livro invisível convivendo com os livros visíveis de Andara. Enfim: uma Harmonia Assimétrica, uma Nudez Vestida, em todas as coisas. Relê aquele trecho, que ficou como epígrafe desta entrevista, de K: O escuro da semente, este novo livro escrito de Andara que eu estou sonhando, escrevendo, sonhando, ele em mim se sonhando, emergindo, não sei de onde, nunca se sabe exatamente de Onde – como o castelo de Kubla Kan, na hipótese de Borges. Então, estou jorrando esse livro para fora de mim, para tentar tornar mais claro isso, para mim e para os outros, isto: Nós nos tornamos seres viciados em ver as diferenças nas semelhanças. Está errado, essa é a visão mais superficial da vida: tente ver a Semelhança nas diferenças, é só assim que conseguíssemos ver nas profundidades mais escuras do coração da condição humana, de outra forma só iremos nos tornando seres cada vez mais cegos, homens-toupeiras, no aquém do homem, e nem a Toca de Kafka nos servirá de abrigo. Então, não classificando, mas arborizando passo a passo a escritura de um livro, deixando que ele se amplie ou se retraia, espontaneamente, porque se trata de uma semeadura de palavras sem garantias de que teremos boa safra, o que faço é observar as metamorfoses por que vai passando a obra, que como bom filho da Floresta Sagrado chamo de versões: semente, arbusto, árvore, floresta. Poderia ir também da lagarta à borboleta, seria a mesma coisa. São metamorfoses que estão aí, ao nosso redor, no mundo natural, e no entanto sobrenatural, isso nada tem a ver com as classificações do mundo conceitual. Nesse outro mundo, observa. O que vês? Imensas aves do mal se voltando contra o próprio Mal que as criou em conseqüência do egoísmo perverso, perversor, pervertido do mundo civilizado, esse mundo oco, que escava cada mais fundo as fronteiras entre ricos e pobres. Para dar um só exemplo abrangente. Os acontecimentos que agora eu vejo, me dizem que ainda estamos muito atrasados. Que estamos ainda na versão arbusto do que a vida poderia ser, mas que, tendo perdido a semente original, não chegaremos à versão arvore e muito menos à versão floresta. Nossas metamorfoses modernas parecem querer nos afastar cada vez mais de nós próprios, quando deveria ser exatamente o contrário. Se impõe reverter esse caminho, se impõe desviar pelo saber, como, citando alguém que não lembro, disse numa entrevista talvez o mais sábio dos diretores de cinema, Robert Bresson. Eu proporia ainda mais: desviar de todo o saber, por um outro saber. Que saber seria esse? Esse não-saber? É isso que Andara busca. O que, quem sabe, o Zen já achou, quando nos recomenda Ouvir com os olhos, ver com os ouvidos. Suspeito que pelos velhos caminhos tantas vezes navegados, só acabaremos chegando à Terra Devastada do Rei Pescador da Demanda do Santo Graal, a Waste Land de Eliot, à Terra Gasta.

Se todos nós somos seres de espanto, o que você acha que mais nos espanta? O que lhe espanta? A vida é um espanto? Não é um milagre?

Cecim: Os milagres não são coisas separadas da vida, toda ela é um milagre, é O Milagre. Tudo é epifania, quer dizer: toda essa irrupção do sagrado na Natureza. Não se pode entender nada se não se entender primeiro isso. E tendo entendido isso, o que mais pode nos espantar? Tudo está contido no próprio espanto de ser, de ser-se. O que me espanta é que nós, as pessoas, demoremos tanto tempo para nos dar conta desta evidência: que todos somos seres de espanto. Todos somos O Vazio que transborda e enche a Vida de formas. Sabes exatamente onde nós estamos, agora? Num Lugar Sem Lugar que é ao mesmo tempo o Lugar de Todos os Lugares. Mestre Eckhart disse um dia: Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes. Eu já citei essa frase de Eckhart num dos livros de Andara, foi em Os animais da terra, de 1981. Acho que escrevi esse livro só para levar essa frase a um número maior de pessoas. Os benefícios da compreensão do seu sentido profundo podem ser imensos.

Como é seu impulso literário? Vem de inspiração, sonhos, lembranças? O que move você a escrever um novo livro?

Cecim: Eu não escrevo o Livro, eu apenas pareço estar escrevendo o livro, mas isso é mera aparência: o livro é que se escreve através de mim. Sou apenas um Instrumento. Um outro Kubla Kan. Um escritor vaidoso da sua obra é um perfeito ignorante, e é uma contradição nos termos.

O que você prefere ler, quando não está empenhado nos seus próprios projetos?

Cecim: Tudo. O rosto de uma pessoa que passa, uma lembrança que volta, as pedras, uma marca de passo num caminho, uma ave caída no chão, suas asas já virando terra, outra ave ainda no céu, a chuva, as lágrimas, a água correndo na calçada depois da chuva, a noite estrelada, que aprendi a ver melhor com Van Gogh, sonhos, finjo ler mãos, leio as antigas ilusões perdidas, que ensinam muito quando relidas, leio formiguinhas carregando folhas fazendo de contas estou só olhando, a lua numa gota de orvalho, como o mestre zen Dögen, e o pensamento do próprio Dögen, e às vezes até os livros que ele escreveu, e os de Beckett, Kafka, que prefiro ler cintilando no escuro transformado em homem vaga-lume, Schopenhauer, leio ao mesmo tempo Plotino falando do Uno e Nagarjuna falando da Originação Dependente e entendo que não foi mera coincidência eles terem vivido ao mesmo tempo no século III DC, cada um num hemisfério do cérebro da Terra, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão tristes para saber como posso ajudar, tento ler os sentimentos das pessoas quando estão alegres, é uma leitura mais fácil, para saber como posso não estragar, gosto de reler os meus filhos, gosto de reler os meus livros, estou sempre fazendo isso porque se comecei a escrever foi para poder ler os livros que eu gostaria de ler e não achava na vida porque ainda não haviam sido escritos, leio também as notas da música de Bach como palavras de uma frase misteriosa nos falando a Frase mais misteriosa que já foi lançada no ar por um homem. Enfim, leio todo o visível enquanto posso, antes que, invisível, comece a ser lido, como dizia São Paulo: Agora vejo através de um cristal escuro, mas amanhã verei como sou visto. Olha aqui, o importante é entender que os livros, esses que se escreve, não devem ser a nossa leitura favorita, que a nossa leitura favorita deve ser diretamente, mas sem dúvida sempre de surpresa, de soslaio, o Livro, a vida. Só lendo primeiro este é que se pode ler aqueles, como conseqüências. Ainda que seja verdade, também, que A vida imita a arte, como queria Oscar Wilde.

A crítica literária não lhe interessa (- Não escrevo para agradar, escrevo para libertar o homem, a vida.). Por que? Ao confessar isso, você mesmo não se torna uma espécie de crítico?

Cecim: Grande parte da crítica ainda não aprendeu a ler o Livro, a vida, como poderia ler essas coisas tão pequenas, os livros que os homens escrevem? Eu espero uma literatura que seja cada vez mais capaz de fazer, enquanto se faz, a sua própria crítica, como o Dom Quixote de Cervantes, e autores como Kafka, que enquanto escrevia sua obra que não nos cabe julgar, porque devemos apenas agradecer por ela existir, como disse Alexandre Vialatte, mantinha um Diário rigoroso, minucioso do que significava para ele estar vivendo, ser um Serdespanto. Mas não tenho nada contra os críticos, nenhuma aversão. Até gosto deles, mesmo que finjam serem outra coisa, percebo que são homens como eu. Só não me submeto. Na verdade, quando disse que não escrevia para agradar estava me referindo mais ao leitor. Eu não gosto de ser lido. É estranho, não é? Acho que é porque acho um desperdício as pessoas estarem lendo livros em vez de estarem lendo, instantaneamente, a própria vida, que é mais emocionante, muito mais secreta e mais bela do que qualquer livro que se possa escrever.

Para terminar: o que é para você a leitura?

Cecim: Ler é nutrir. Só devemos ler o que nos nutre. Não somos obrigados a ler, como um papel a desempenhar na vida. Mas que sirvam primeiro o feijão a quem tem fome, depois virão naturalmente os sonhos. Não se pode exigir que as pessoas leiam enquanto correm pelas ruas em busca de alimento, virando lixo. Aqui devemos inverter urgentemente Oscar Wilde, quando dizia: Dêem-me o supérfluo e eu dispenso o essencial.

O que você quer dizer com o natural é sobrenatural e vice-versa?

Cecim: Eu não quero dizer nada e estou dizendo isso. Foi mais ou menos o que disse um vez John Cage, que fazia música de silêncio. Mas por que tu estás me perguntando isso sobre o natural ser sobrenatural e o sobrenatural ser natural, como se já não soubesses? É claro que as coisas são assim. A tua pergunta me espanta.

Fabrício Carpinejar ENTREVISTA Serdespanto






O paraense Vicente Franz Cecim é um xamã da narrativa brasileira. Não quer a salvação pessoal. Cura a linguagem, misturando poesia, ensaio, prosa e anotações de viagem. Criou Andara, uma semente verbal que virou árvore falante, depois floresta e hoje é uma cidade pensativa de muitos afluentes e rios caudalosos, transfiguração da Amazônia, região natal do escritor. Pertence a uma genealogia de poucos e raros, como Guimarães Rosa. Sua intenção é mostrar o que ele mesmo não sabe, o conhecimento de ir se desconhecendo. O diferencial do ficcionista é o derramamento do canto. A literatura é fantasma; a obra, invisível. Não existe fim, nem início, serpente sonâmbula que morde sua cauda. O autor recusa a prepotência e conversa nos ouvidos do leitor, pedindo conselhos e partilhando a perplexidade dos mistérios. Em Andara, filósofos e poetas tem paridade com moscas e serpentes. Anjos, mulheres e aves exercitam a sabedoria da queda. Tudo é possível porque estamos no território do Nada. É a leitura do espanto e da estranheza. FABRÍCIO CARPINEJAR



FC: Como define Vicente Franz Cecim? Fora e dentro?

VFC: Um serdespanto, mas isso todos nós somos, para isso basta ter nascido. E isso: Isso: que somos seres de espanto, é tudo o que nos é dado saber. Agora, cada um é um serdespanto à sua maneira: uns, mais ser no serzinho humano e menos no Ser de Tudo, outros mais sendo no Ser de Tudo e só um serzinho de nada em si mesmo. É uma questão de despertar o pequeno s para o grande S ou não. Mas haverá mesmo essa diferença? Provavelmente, não: somos sempre o grande S contido, Oculto, no pequeno s que somos. Talvez o que sou, não fora & dentro, mas no foradentro, já que essa divisão é pura aparência, possa ser dito por duas experiências que te conto brevemente. Dizem que antigamente havia homens que viviam cantando, só queriam saber de cantar, então os deuses os transformaram em cigarras: essas cigarras que hoje nos ciciam nos crepúsculos sobretudo, ainda seriam eles nos sendo em Cantos em coro junto com os cantos das folhas secas. Tu já ouviste folhas secas cantando no vento? Esse é a primeira experiência que me revelou estranhamente o que talvez sou: lá pelos 3, 4, 5 anos, morava num casarão antigo em Belém com muitos, muitos tios, tias, primos e os meus pais e minha avó, mas fugia do tumulto feliz da grande família para ficar sozinho na rua sempre deserta ao lado onde passava o muro imenso e compacto de um cemitério já então só habitados pelos mortos, o Cemitério da Soledade, onde ninguém mais era enterrado fazia anos. Era sempre no crepúsculo isso, e enquanto a luz ia se esvaziando na Terra que adormecia, as estrelas se esboçando no céu, e a lua branca, a que aparece para nos alucinar de dia, de olhos abertos, ia cedendo seu lugar à lua amarela, que aparece nas noites para nos alucinar de olhos fechados, e o Silêncio ia se instalando em tudo com sua presença sagrada de ausência dos sons: pois pense nos anos 50, um tempo lento e vazio das agitações modernas numa cidadezinha lenta como Santa Maria de Belém do Grão Pará: então, nesses crepúsculos melancólicos, como eu ia dizendo, as cigarras começavam a me chamar das gigantescas mangueiras enfileiradas ao longo do longo muro da Soledade: Ce cim Ce cim Ce cim. Foi a primeira vez, que me lembro, que pressenti o que eu fosse, o que eu era. A segunda vez, já um jovem, na Ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, lugar de férias de toda a cidade no verão, uma manhã mal despertado quando lavava os olhos na janela que dava para o quintal e a água caia das minhas mãos e dos meus olhos, se deu outra Revelação: vi, lá embaixo, no terreno alagado do quintal da pequena casa de madeira da minha mãe Yara, a Felicidade, a Alegria de uma florzinha insignificante que se banhava nas águas dos meus olhos recém-despertos para a vida visível. Por aquele breve ou infinito tempo sem tempo, não houve homem & flor, todos os eus do Universo se desfizeram e só ouve o Nós, o Um, o Homem em Flor. E essa: Essa: alegria daquela florzinha me disse tudo o que eu precisava saber para o resto da minha vida sobre a Alegria natural que move e nutre, também com suas dores, pois esse é o sentido didático de existirem flores com espinhos - embora às vezes eu me pergunte se o que existe mesmo não são espinhos com flores - toda a vida em si, dos insetos às galáxias e mais, mais além das Galáxias e mais aquém dos Insetos. Veja, nessas duas experiências, a Progressão aproximativa: como esses Issos, pois são sabemos que nomes lhes dar, vão se chegando para nós. Mas com rigorosas exigências, que também desconhecemos. Primeiro, sob a forma das cigarras: sussurrando, mas se sob a condição da Penumbra. Depois, sob a forma daquela flor: já Cintilando, pois aquilo cintilou em mim para sempre, mas sob a condição inapelável da mudez, do Silêncio. Um entrega mais plena sendo dada: Luz&Silêncio, então, como um passo que apaga o anterior, a outra entrega: Penumbra &Voz, também fosse ficando para trás. Seria essa a origem mais remota de Andara, isso assim feito de livros obscuros ainda escritos que vão cedendo lugar a um não-livro sem nem sombra das palavras no papel que se quisesse só presença-ausência? Bem, foi assim como contei. E houve o pássaro enorme que desceu do céu sobre mim numa manhã chuvosa de Belém na minha juventude e mergulhou em mim profundamente, em meu peito, onde ainda está - mas é melhor não contar. Onde iríamos parar? Desde então fui entendendo que um homem não sabe o que é, só sabe de si essas Revelações que vai tendo ao longo da sua vida. No meu caso, é mais complexo. Sim: porque desde que incluí em mim, ou me incluí Nele, meu filho Franz assassinado aos 19 anos e passei a me chamar Vicente Franz Cecim, passei, passamos, a ser dois os que escrevem os livros de Andara, dois os que vivem, em Um, a vida: Ele na vida invisível lá, eu na vida visível aqui. O Pai & e o Filho, o Vivo & o Morto. Ó Serdespanto. Mas eu usei as palavras erradas: eu quis dizer: - O Pai aqui, ainda o Florescido & o Filho lá, já o Fenecido. Florescer, fenecer, entendo mais essas palavras a partir da natureza transeunte. Não entendo muito bem essas palavras, Nascer, Morrer, acho que elas têm certezas demais sobre coisas que não sabemos. Foi dessas formas que fui me sendo, me tornando, o ser de espanto que hoje sou aos 55 anos. Sempre encarei esses acontecimentos com muita naturalidade.

FC: O Livro Invisível é uma forma do autor se ausentar e deixar que unicamente a vida escreva, sem mediação?

VFC: É sempre a vida que nos escreve, nós não escrevemos nada, é o Nada que nos escreve escrevendo a vida, as paisagens, os homens, as chuvas, o vento, as vozes das coisas, seus cantos também, através de nós: somos o Lápis que Escreve o Livro que escrevemos vivendo. Os livros escritos são apenas cópias mal feitas desse Livro, e nossos lápis têm pontas rombudas. Mas um dia escreveremos como passarinho canta: de repente canta, e canta porque canta, sem saber por que. Na verdade, não canta: é ela: Ela: quem através dele canta, a Vida real oculta em nós, em tudo. Mas lá encima já falei errado de novo, preciso corrigir isso: eu não quis dizer Nada, essa palavra eu deixo à deriva no Ocidente, eu quis Vazio. Eu quis dizer: - O Vazio que transborda. É ele que nos escreve escrevendo a vida. Eu fui sabendo disso à medida então que ia escrevendo os livros visíveis de Andara, que são os livros que escrevo, os volumes individuais da Obra, e à medida que Viagem a Andara, o livro invisível que não escrevo, Ele é um não-livro, literatura fantasma, ia se formando: ia nutrindo esses livros para que eles existissem e deles ia se desnutrindo para existir em sua não existência. Andara me escreve, por isso escrevo Andara, que é a Amazônia transfigurada através de Mim. Se eu fizesse literatura apenas - o que não serve para nada, ou para muito pouco - e não deixasse a Literatura de lado para me dedicar, dedicar toda a minha vida, a praticar essa Alquimia de me tornar cada vez mais um ser de Escritura e cada vez menos um homem escritor, Andara não existiria. Andara, sabe o que é Andara: é um Serdespanto geográfico. Já a Amazônia é - poderia dizer só, para deixar bem claro - uma geografia espantosa. Mas é a Amazônia, a Natureza Sagrada, que torna possível essa impossível Andara. Tu vês: novamente se repete a parceria do Pai & do Filho, do Florescido & do Fenecido. Nesse caso, é a parceria do Real que nos Sonha com os nossos Sonhos do Real.

FC: Conversa continuamente com o leitor. Questiona, dá licença, compreende. É um recurso para extirpar a solenidade e a arrogância do escritor? A sensação é que testemunha e lê a obra, não a escreve.


VFC: Desde jovem fascinado pelos livros, lá pelos meus 16 anos, me irritava muito uma coisa na Literatura: sua prepotência. A prepotência do Autor, a submissão do Leitor. Vivia dividido entre o fascínio e a irritação. Hoje entendo assim o que se passa: isso acontece quando no Autor ainda predomina, rígido, o homo faber & o homo sapiens vindo, não abre de par em par as portas como seria de se esperar, mas ele próprio um tanto prisioneiro de sua chave de saber e cheio de auto-suficiência, muitas vezes estraga tudo, encerrando o Leitor num círculo fechado em que determina todos os movimentos permitidos. Faltava o terceiro homem, que raramente vem se juntar aos outros dois na longa História da Literatura, mas que até às vezes - tão transbordante é o Vazio que através de nos transborda - de repente emerge do próprio Autor artesão, num momento em que ele martela em devaneio o ferro do seu texto. Quem era o ausente? O homo ludens. Foi ele que viu em Homero os dedos cor de rosa da Aurora, não foi? O homo faber viu a Aurora e não teve tempo para se comover com isso, o homo sapiens viu o sol reaparecendo após dar a volta à Terra e se apressou a registrou seus movimentos. Isso não basta para que as vértebras infantis cantem seus cantos em arte. Pois então. Eu ia lendo os livros, e pensava: a vida: a Vida: é que é importante viver. Tantos segredos velados a serem quem sabe desvelados. Me lembrava da Alegria da florzinha se banhando na água dos meus olhos, de outras coisas que me aconteceram depois. E ia entendendo que a Literatura freqüentemente mais velava do que desvelava a vida. E me sussurrava, só pra mim, escrevendo sempre, sempre, no meu canto, quieto: só escrevo um livro quando tiver conseguido eliminar toda separação entre o livro e a vida, entre a vida escrita e a vida vivida, entre a minha e eu que escreverei, e sobretudo entre o leitor e eu. E chamava, como depois passei a chamar o pássaro Curau, eu mesmo não, mas o personagem Jacinto de Os jardins e a noite: - Vem, homo ludens, vem levar os homens para os teus jardins de textos. E foi assim, adiando acrescentar infelicidade à infelicidade de uma literatura feita por homens confusos e leitores infelizes, que só escrevi - tentando escapar a essa Limitação - e então publiquei, o primeiro livro de Andara, A asa e a serpente, em 1979, já aos 33, aquele idade em que se vai para a Cruz. Eu não queria ir para a Cruz, queria ir para baixo da Figueira. Foi conversando com os homens escondidos dentro dos autores dos livros, conversando, repare nisso, menos que lendo o que eles escreviam, que eu fui me tornando naturalmente um homem que de dentro dos meus livros converso com os leitores que estão fora do livro. Aí, eu puxo para dentro, como entrava nos livros que lia, e temos estranhas e íntimas conversas à sombra da Página em Branco, que vai se cobrindo, como as folhas secas das mangueiras das cigarras cantantes, de palavras. Dessa conversa participa o Universo inteiro, dela gostaria de conseguir um dia que toda arrogância fosse banida: no Livro Invisível de Andara um inseto tem tanto direito quando um homem de manifestar o seu espanto por existir. O autor freqüentemente é menos que os personagens. É mesmo mais como tu dizes: Autor, já quase só mera testemunha da vida se dando como vida escrita.

FC: Imagina um desfecho para a mítica Andara?

VFC: Os livros de Andara sempre terminam, devessem terminar com a frase: A viagem a Andara não tem fim. Admitir que os livros escritos de Andara pudessem ter um fim, isso seria como admitir que a vida visível pudesse tem um fim. Não peço que ninguém me acompanhe nisso que agora vou dizer, se não foi chamado pelas cigarras, se não teve a experiência do Homem em flor, se não recebeu e tem guardado um pássaro dentro do peito. Para ter um fim, uma coisa precisa existir. E os livros visíveis de Andara existem, a vida visível existe? A vida, a visível, escrita ou vivida, é da natureza das miragens. É isso que oscila entre o Florescer e o Fenecer. Ser de empréstimo, transeunte. Seu encanto é sua natureza de passagem. Suas palavras favoritas são Sonho, Efêmero, Fugaz. Existe é o transbordamento do Vazio, o vazio no centro que faz toda a roda girar. Existe é Vida invisível, mas dessa: Dessa: como falar a propósito dela a palavra Fim? Quando os livros escritos de Andara tiverem deixado de existir um dia, a Viagem a Andara, o Livro Invisível que não é escrito continuará existindo em sua existência de não-livro. Mas vê, repara: Andara não é mais só uma cidade, também com ela se deu o Gênesis dos caminhos vegetais ao longo desses anos todos de surgimento de Viagem a Andara, o livro invisível: Andara começou como uma Semente: era apenas um bairro esquecido à beira de um rio indolente da cidade de Santa Maria do Grão habitado pelos mortos de um cemitério esquecido e a floresta ia retornando sobre a Civilização, recobrindo tudo: depois Andara se tornou um Arbusto: foi quando ela, crescendo, se expandindo, se tornou a Amazônia inteira: depois, eis Andara Árvore, e dando seus frutos: foi quando sua expansão a levou a se tornar uma região-metáfora da vida inteira: agora, nos últimos livros escritos de Andara que vão nutrindo o não-livro invisível, eis Andara Floresta: ela pulsando lá, no bairro esquecido inicial, mas já vai indo desse pequeno bairro esquecido da cidade do Grão até às imensas distantes Galáxias. Andara sempre quis e o que mais quer é ir do Visível ao Invisível. E isso não é o caminho para um fim, que é sempre uma Queda, mas um percurso para a origem: a Origem de Tudo, o que é uma Ascensão.

FC: Fica entre a prosa e a poesia, ensaio e ficção. Ser inclassificável não o desagrada, condenando-o a permanecer num círculo restrito de iniciados e ainda longe do grande público?
Não ter parâmetros ou antecedentes dificulta a difusão crítica?


VFC: Difusão interessa, mas pouco: interessa mais a infusão, aquela Alquimia, de que te falei no começo, em que tudo cesse suas vidas separadas e se funda no Uno: prosa, poesia, meditações, reflexões, texto em Escritura, insetos e homens, o Visível e o Invisível, o dito e o não dito, o Silêncio e a Voz, a página branca e a página escrita, o sonhado e o vivido. Andara quer a fusão total, quer a fissão que abra a Fenda por onde tudo se reencontre na Unidade Original. Deixa eu acrescentar uma coisa: Andara tem parâmetros, sim: mas não estão onde estão sendo buscados pelos leitores, pela crítica especializada em Literatura, não são parâmetros simplesmente literários: os parâmetros de Andara só podem ser achados na própria Vida. Para ler Andara, não basta saber ler letrinhas no papel, e, aliás, nem mesmo é preciso ler Andara: mas é indispensável conseguir ler através do lido: aí se renovará a Alegria que me foi transmitida pela florzinha que bebeu a água dos meus olhos quando eu era criança. E então se lerá Andara. É essa Alegria que escreve Andara. Não eu, que sem ela provavelmente jamais escreveria nada. É ela, como já disse, que através de mim inscreve o Vazio em Andara. Mas não é tão preocupante assim que Andara esteja um tanto fora do Mercado de Livros. Na verdade, não está. Como poderia, se o Mercado de Livros, como os insetos e as estrelas, já está dentro de Andara?

FC: As vozes de Andara estão sempre em trânsito, nunca satisfeitas. A busca do homem consiste em fugir de sua identidade?

VFC: A busca aflita, sim. Essas são as Vozes da busca aflita. E é assim que, na vida visível, as coisas são. Quase como disse Beckett: Como é. Mas eu penso que em Andara a busca do homem é exatamente o contrário: é fugir da sua não-identidade. Em Andara há uma frase-epígrafe: Atravessar o que nos nega, chegar ao Sim: e é assim que tu verás um S nestes dias cegos. Vê: Andara se faz perguntas, as perguntas que a Vida se faz. Ou que os homens imaginassem ela, a Vida, se fazendo. O que também é uma forma de perguntar: a Imaginação é a nossa maior boca de perguntas. Em Andara, se a pedra se pergunta: Um dia serei semente, e serei árvore, e darei frutos? Se o Vento se pergunta: que Pulmão me emite como voz sem palavras, por que às vezes cesso, e é como se nunca houvesse existido? Se o Homem se pergunta: a minha sombra é mais real que eu? Todas essas perguntas deixam de ser perguntas no momento em que são feitas e se tornam realidades de Andara. Andara, reconhecendo a ignorância humana, é Terra de Hipóteses. Melhor assim do que a arrogância tola de um Saber que ainda não temos. Mas vê que eu não sou o que se chama de um pessimista: eu disse: um Saber que ainda não temos.

FC: Sua obra é um elogio ao silêncio. Acredita que desaprendemos a residir na linguagem (não mais a habitando poeticamente)?

VFC: Esse é o equívoco: o Equívoco: nós não habitamos a Linguagem, ela é quem nos habita. Apesar de todos esses séculos de Literatura não teríamos aprendido nada? Ainda não entendemos o que significam as palavras: No princípio era o Verbo? O verbo está em nós, e não nós nele.

FC: Seus personagens estão em perpétua queda. Todos os treze livros de Andara (reunidos em três volumes) são marcados pela negação. O que impede a ascensão? Até quando "atravessaremos o que nos nega, para chegar ao sim"?

VFC: Talvez, para muitos, seja terrível ter que dizer isso: O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra e ser a chuva inversa dos Céus? Em Andara está tudo caindo e tudo subindo. Andara é esse se cruzar no meio do caminho entre a asa e a serpente, passando pelo homem agarrado em seu tronco e lançando sobre ele Clarões e Sombras para que finalmente veja: a Terra lá no alto, o Céu embaixo de si. Vê, tu sabes que eu gosto de falar com as palavras das imagens. As palavras são ressequimentos, belos ressequimentos, mas nas Imagens ainda há o viço. Imagina: que estamos no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria: e então aí alguma coisa vibra imperceptivelmente: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é: uma semente: um caule: a luz do Sol e desabrocha uma Flor: que se vive, e depois vai murchando, fenecendo: uma parte se curvando, retornando à Terra, mas a outra: a Outra: o seu perfume, se evolando e ascendendo aos céus: sempre ascendendo, passando pelas aves que voam sob as nuvens e mais adiante já pelas Aves que voam por sobre as nuvens, e diz-se disso: Anjos?: e sempre subindo o perfume da Flor indo em sentido inverso à flor coisa fenecível, então irremediavelmente fenecida, e já deixando as Aves mais altas para trás e agora passando pela luz das estrelas, tantas Galáxias a ultrapassar, eis: o perfume penetra, também irremediavelmente atraído, como a flor fenecida pela Terra, na Luz que deu luz às estrelas: que agora também ficando para trás: é a Pura Luz que chama, Chama onde mergulha e na qual se funde o perfume: o Perfume: indo cada vez mais fundo através dessa Luz até tocar a Semente Sem Luz, a Semente que nem Luz é ainda: diríamos: a Semente sem semente: agora estamos no Coração do coração sem coração das coisas: e aí, eis: então alguma coisa vibra imperceptivelmente ainda não coisa: depois, mais perceptivelmente, e vai se nascendo e é uma semente: a Semente que está, sempre esteve nascendo no centro da Terra, no coração do Coração da Matéria. Ponto final. Eu te pergunto: saímos do mesmo lugar? Não. Esta não foi uma viagem entre dois pontos, foi uma viagem entre um ponto e ele mesmo. Não há dois pontos e um espaço entre eles a percorrer. Só a viagem: a Viagem. Só ela acontece. Só a ela é dado acontecer. Andara é essa viagem, entre dois pontos que não existem. Andara é o Lugar de Nenhum Lugar, por isso é o Lugar de Todos os Lugares. Ficou mais claro, agora?