30 de setembro de 2008

Subjetivações, identidades e o linguajar (excerto)

Por
Ricardo Pimentel Méllo (*)
&
Angela Flexa Di Paolo (**)


Departamento de Psicologia Social e Escolar, Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da Universidade Federal do Pará – UFPAII UFPA



O linguajar como prática de identidades ou de processos de subjetivação


Através das palavras não se irá à parte alguma?

Vicente Franz Cecim: Terra da sombra e do não









Diferentes concepções de linguagem configuram diversas formas de compreender o mundo, atuando nele. Se considerarmos a linguagem um meio através do qual se chegará seguramente aos sentidos verdadeiros e inerentes às coisas, então trabalharemos com a idéia de que há um mundo e um sistema de significações a ele acoplado; natural e invariavelmente, buscaremos desvelar tais sentidos reais e verdadeiros. Se, por outro lado, delinearmos a linguagem como prática, ação, movimento e flutuação de sentidos, acontecimentos, modos de ser, então compreenderemos o mundo como um caleidoscópio de construções, instituições, superfície de inscrições, possibilidades de devir.
Para os estudos desenvolvidos neste trabalho, a segunda concepção apresenta-se como mais profícua. Referimo-nos à linguagem como prática, veiculada no trabalho de autores de campos diversos do saber, entre os quais, Humberto Maturana e Michel Foucault que, sob este aspecto, mantêm uma proximidade teórica. Maturana (2002, p. 59) chega a usar, algumas vezes, o termo “linguajar”, para expor que “a linguagem se constitui quando se incorpora o viver, como modo de viver”. Foucault (1995) adotou o termo “práticas discursivas”, para expressar que discursos ou conjuntos de enunciados não descrevem relações de saberes e poderes, mas são as condições que possibilitam o exercício de tais relações, operando e instituindo acontecimentos em campos estratégicos. Todos eles enfatizam o caráter de atividade, de prática, intrínseco à linguagem humana, caráter este muito bem exposto por Mary Jane Spink no livro que organizou (SPINK, 1999).
Utilizamos a concepção de linguagem que mostra maiores aproximações com a perspectiva de Michel Foucault sobre os processos de subjetivação. Linguagem é, aqui, condição de possibilidade na constituição das subjetivações, entendidas como maneira de experimentar a si mesmo (BERNARDES; HOENISCH, 2003). É uma rede de articulações, um emaranhado povoado de aspectos históricos e culturais (aqui entendidos como materialidades que incluem arquiteturas, hábitos, técnicas de governo...), que se conectam na formação de narrativas, às vezes lineares, contínuas, mas outras vezes descontínuas, fragmentárias, pontos de dispersão de matizes identificatórias
1 – que podem produzir efeitos de singularizarão, conforme o local, a época, as circunstâncias de encontro, que levam a coerências e, assim, a uma “cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu” (BRUSCHI, 2003, p. 83) e, nesse caso, temos as tais tentativas de definir o ser humano a partir de uma personalidade, ou identidade; ou, como preferimos neste artigo, temos dispersões que apenas se dobram sem fechar-se completamente em uma caracterização una do ser humano.
Concatenar os processos de subjetivação ao linguajar requer presumir as subjetivações como interpeladas e articuladas por redes discursivas (e não resumidas a elas), que produzem, instituem, inventam, transformam e veiculam modos de agir no mundo, possibilidades de vir a ser. Nenhum matiz identificatório é fixo, sólido e estável, mas fluido, intercambiante, em vias de se fazer, possibilitando às pessoas transitar por formas diversas, construir modos de ser, assumir posições, descartá-las e utilizá-las de novo. Seria como nos carnavais, em que inúmeras máscaras se metamorfozeiam em corpos, se encontram num espetáculo de cores e formas, sem querer restituir a essência de quem as usa (revelando um rosto por trás das máscaras), mas abrindo possibilidades de mudanças, de performances, de flutuações, num movimento que põe em jogo mais os desejos de devir do que possíveis essencializações e classificações, dando continuidade ao processo de constituir-se, subjetivar-se, dobrar-se, constituindo corpos que só têm máscaras (DELEUZE, 1991; 1992; 2000a; 2000b), e estas, definitivamente, não são falsidades ou escudos de um rosto essencial.


Subjetivações: invenções e dobramentos, na experiência de um “si”


Dizer que os movimentos constituintes das subjetivações são interpelados pelo linguajar não significa remeter a questão ao campo lingüístico, somente. Subjetivações se edificam em discursos, em relações de enunciados, mas não se restringem a eles. É necessário compreender que regulamentos de conduta são engendrados nesses discursos; que práticas e técnicas, autoridades, lugares, posições e aparatos constituem regimes de subjetivação e gerência de práticas. Rose (2001b, p. 149) argumenta que “a subjetividade nunca pode ser uma operação puramente lingüística”. Numa alusão ao trabalho de Gilles Deleuze e Félix Guattari, o autor afirma que a subjetivação emerge de um regime de signos imanente a um agenciamento ou organização de poder, e não de propriedades internas à linguagem. Agenciamento é um neologismo do termo adotado por Rose (2001a; 2001b): assemblage, que se refere ao ato ou efeito de reunir diferentes partes para formar um novo objeto. A palavra similar em francês agencement foi utilizada por Deleuze e Guattari em Mil Platôs, no sentido de montagem, arranjamento, combinação. Para Rose (2001a, p. 51),
por agenciamentos, quero significar a localização e o estabelecimento de conexões entre rotinas, hábitos e técnicas no interior de domínios específicos de ação e valor: bibliotecas e escritórios domésticos, quartos de dormir e casas de banho, tribunais e salas de aula, consultórios e galerias de museu, mercados e lojas de departamento.
Ao se referir à linguagem como agenciamento de práticas discursivas, Rose (2001b) adota a perspectiva de Michel Foucault, elaborada em A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso. Foucault (1995) propõe que, se pudermos descrever, entre um certo número de enunciados, um campo de possibilidades estratégicas, onde se delineariam jogos de aparecimentos e dispersões de conceitos, ora configurando sistemas de dispersão, ora configurando regularidades entre objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas, teríamos, no segundo caso, o que chamou de formações discursivas (FOUCAULT, 1995, p. 43). Estas seriam como domínios de saberes que encontram uma certa regularidade enunciativa e que muitas vezes configuram “ciências”, “teorias”, “ideologias”, de modo que têm nas práticas discursivas suas condições de existência, de coexistência, de manutenção, de modificação ou de desaparecimento.
Foucault (1995; 2001) defende a perspectiva de discursos que não se limitam à comunicação (aos atos de fala) e que não estão ligados por uma ordem interna de natureza ou funcionamento. Em vez disso, discursos são elaborados em regras de formação, em campos políticos estratégicos, em regimes de significação, que podem mantê-los unidos por um certo período, mas que também podem modificá-los, dispersá-los – não sendo nunca coerentes, mas, possivelmente, coexistentes.
Para Rose (2001b), esta concepção possibilita pensar sobre as formas em que a linguagem aparece em espaços e épocas específicos e que regimes governam as enunciações. Há regimes e técnicas que governam, gerenciam, modos de se posicionar e enunciações em diferentes épocas, locais e situações. É uma questão que traz Foucault (1995): quem fala? De que lugares institucionais fala? Que posições ocupa na rede de relações e informações? Sob a perspectiva foucaultiana, Rose (2001b, p. 150) ressalta que é uma questão “dos ‘diversos status, dos diversos lugares, das diversas posições’ que devem ser ocupadas em regimes particulares para que algo se torne dizível, audível, operável”.
Rose (2001b, p. 159) salienta, assim, que a subjetivação não é somente uma operação lingüística, que “a linguagem não é, de forma alguma, primária na produção de pessoas”. O autor enfatiza que “é necessário insistir que nós não somos ‘constituídos pela linguagem’” (ROSE, 2001b, p. 175). A linguagem é considerada um agenciamento de práticas discursivas, ela é agenciada em um regime prático que conecta corpos, hábitos, rituais, forças, a fim de possibilitar a emergência de certas relações que temos com um “si”. O linguajar, incorporado aos modos de viver, faz parte desse agenciamento e não pode ser dele separado. Não se trata de analisar as narrativas e as significações que constituem modos de subjetivação, mas é preciso voltar-se
para a analítica das técnicas, das intensidades, das autoridades, e dos aparatos [...]. Quem fala, de acordo com que critérios de verdade, de quais lugares, em quais relações, agindo sob quais formas, sustentado por quais hábitos e rotinas, autorizado sob quais formas, em quais espaços e lugares, e sob que formas de persuasão, sanção, mentiras e crueldades? (ROSE, 2001b, p. 157-158).
São agenciamentos que tornam possível estabelecer certas relações que temos conosco mesmos e com os outros em regimes de conduta e tecnologias de subjetivação. Compreender o ser humano nessa perspectiva é, de acordo com Rose (2001a; 2001b), tratá-lo como sendo produzido e agenciado em tecnologias de subjetivação, particulares a determinadas épocas, espaços e circunstâncias. Agenciado no sentido de ser um efeito, uma montagem, bricolagem ou combinação plural e sempre fragmentária dessas práticas/técnicas de subjetivação. Pensar em termos de tecnologia de subjetivação nos remete a verificar que formas de ser são reunidas, arranjadas em certos agenciamentos, sob que regimes de governo. As disciplinas psi, nesse caminho, estão inevitavelmente envolvidas na busca de conhecer e agir sobre os seres humanos, criando condições de emergência de formas de se relacionar com um “si”, de ter uma experiência de “interioridade”, de fabricar e inventar modos de nos relacionar conosco mesmos como personagens, identidades, personalidades, agentes livres de autodesenvolvimento e auto-realização.
O que Nikolas Rose propõe é que nos voltemos para a análise das técnicas pelas quais os humanos têm se reunido e se fabricado em agenciamentos. E, sendo assim, não seria possível estudar o humano como filogeneticamente dotado de agência e produtor de práticas culturais, e nem como produto da cultura, mas como artefato produzido em práticas, em tecnologias de governo de si e da população, em agência – que é “a resultante da ontologia que nós dobramos sobre nós mesmos no curso de nossa história e de nossas práticas” (ROSE, 2001b, p. 181). A ontologia humana é constituída em grande parte pela contribuição da ação de tecnologias psi, que a inventam e que atuam sobre ela (ROSE, 2001b). Ressalte-se, tecnologias psi, que também são constituídas em outros campos do saber, não se restringindo à Psicologia.
Por aspectos que dobramos sobre nós mesmos, dobramentos, Rose (2001a; 2001b) não se refere a uma interioridade prévia de um sistema psicológico, mas a técnicas de governo do corpo, à configuração de práticas que fabricam formas de subjetivação – maquinações de aprendizagem, desejos, inteligências, criatividades, andar, vestir agenciam pessoas à medida que criam a noção de interioridade, internalizando vozes, sentidos, afetos, hábitos, técnicas de pensamento e autocontrole. Fala-se de práticas que fabricam formas de sermos humanos em agenciamentos, em que se montam e entrecruzam saberes, instrumentos e dispositivos técnicos na configuração de subjetividades.
Deleuze (1991; 1992; 2000a; 2000b) elaborou a noção de dobra para se referir aos processos de subjetivação. Às relações que temos conosco mesmos (as relações com um si) se interconectam aspectos das relações que temos com os outros, como se estes aspectos se dobrassem para formar um forro e constituir uma relação consigo. Uma relação regulada por saberes e poderes, que é coextensiva a uma relação com um Fora. Para Levy (2003), o conceito de Fora foi articulado por Michel Foucault a partir da sua leitura de Maurice Blanchot. Se Foucault buscou em Blanchot sua inspiração, seu pensamento o atravessou sem nele se fixar, chegando a afirmar que esse espaço vazio seria atualmente a “ficção ocidental”. Sua leitura se direciona à fragmentação da unidade subjetiva, mostrando como a noção de “Homem” e a noção de uma essência do “eu” se enfraqueceram nos séculos XIX e XX. Levy (2003) considera que os dois pontos centrais da leitura de Foucault sobre o conceito de Fora se referem ao apagamento do sujeito e ao conseqüente (res)surgimento do ser da linguagem. A autora ressalta que, se pudermos definir um encontro entre Blanchot, Foucault e Deleuze, este seria o de “estarem sempre fora dos modelos tradicionais da literatura, da filosofia e da história, o de estarem sempre deslizando pelas verdades já constituídas, a fim de abalar tudo o que já é apresentado como pronto” (LEVY, 2003, p. 52).
“A vida nas dobras” (DELEUZE, 1991, p. 130) é uma forma de constituir, incessantemente, modos de subjetivação; constituir uma concepção de interioridade nada mais é que promover dobraduras, plissados, dobrar sobre nós mesmos forças, técnicas de governo do corpo, matizes identificatórias. Dobramentos que produzem efeitos de subjetivação.
as linhas dessas dobras não correm através de um domínio que coincida com os limites carnais da epiderme humana. O ser humano é posicionado, instituído, por meio de um regime de dispositivos, olhares, técnicas que se estendem para além dos limites da carne [...]. O ser dobrado não é uma questão de corpos, mas de locais fabricados (ROSE, 2001a, p. 50).
Como falamos de processos de subjetivação que não param de se efetuar, então as dobras, as relações consigo, estão sempre em vias de se fazer, não delimitam ou aprisionam as pessoas em identidades, mas, em vez disso, lhes permitem deslizar por formas e posicionamentos que flutuam em rizomas, em cenários que apresentam a possibilidade de colocar um jogo de cores, arquitetura, performances e atores em cena.
Vale uma breve digressão para esclarecer melhor a relação que fizemos entre processos de subjetivação e “rizoma”. Rizoma é um termo utilizado por Deleuze (1991; 1992; 2000a; 2000b) para expressar um plano de possibilidades de variações infinitas, de devires, de acontecimentos, que ultrapassam tempos e lugares, não são fixados por datas ou pessoas. Deleuze e Guattari (1995, p. 15) enfatizam que o rizoma se distingue das raízes e radículas pela sua “extensão superficial ramificada em todos os sentidos”. Dentre os princípios do sistema rizomático destacamos três que são diretamente ligados aos processos de subjetivação: Conexão, Heterogeneidade e Multiplicidade. Qualquer ponto de um rizoma, afirmam os autores, pode ser conectado a qualquer outro diferentemente de uma raiz que se fixa a um ponto, uma ordem. E, ao mesmo tempo, um rizoma pode conectar-se com cadeias ou redes as mais diversas. Assim, relacionando com modos de subjetivação, nós podemos operar agenciamentos os mais diversos ao nos experimentarmos. Esses agenciamentos, afirmam Deleuze e Guattari (1999, p. 17), constituem-se em multiplicidades que mudam “de natureza à medida que aumentam suas conexões”. É importante notar que este terceiro princípio, não pode ser compreendido como apenas um valor numérico, (a quantidade conexões), mas os autores se referem à potencialidade, a produção de algum efeito. Apenas uma conexão pode ser múltipla por potencializar diversos efeitos. Não há limitação para os modos de subjetivação, mesmo que possa parecer “pouco rico” ou “repetitivo”.
Peter Pelbart (1998, p. XX) assim descreve o funcionamento de um rizoma:
Num rizoma entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro; ele é feito de direções móveis, sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda; um rizoma não remete a uma unidade nem dela deriva; não tem sujeito nem objeto.
O uso do termo “rizoma” se refere a um emaranhado de filamentos como as raízes de uma samambaia, que perde sua origem e estabelecem redes incintáveis.
Em outras palavras: os “sujeitos” são efeitos de modos de subjetivação; somos um arranjamento, uma combinação de modos de ser; não temos uma subjetividade prévia pertencente a um mundo interno, mas inventamos (e atuamos de acordo com) nossos modos de ser. Trata-se de abrir espaços não só para ver que formas humanas estão sendo inventadas, mas para questioná-las, e inventar formas outras, sempre novas, de atuar no mundo.
Nessa perspectiva, nos “apropriamos” (dobramos sobre nós mesmos) de certas formas de atuar, de narrar-se, de instituir-se em redes de sentidos, que estão sempre sendo tecidas, em construção, jamais acabadas e fechadas. Bernardes e Hoenisch (2003) ressaltam que nossos movimentos de agenciamentos de si (por eles definidos como identidades, sempre no plural) são o resultado de um processo de identificações que possibilitam a emergência de posicionamentos em redes discursivas, que por sua vez fornecem os modos de subjetivação:
ao entender que as identidades são um modo de inscrição em uma rede discursiva, é importante, também, problematizar que esse termo ‘exterior’ (a construção das identidades) torna-se um princípio do ‘interior’. Ou seja, não basta o “sujeito” se inscrever em uma rede discursiva, é necessário tornar essa inscrição uma maneira de constituição de um ‘si’, de um ‘dentro’, pelo qual o “sujeito” se observa e se reconhece como tal. Melhor dito, não é suficiente ser interpelado e se identificar com determinadas marcas identitárias, é preciso dobrar isso sobre si mesmo; em outras palavras, subjetivar-se. Nesse caso, assim como as identidades são o ‘outro’ no exterior, a subjetivação é esse outro ser experimentado como um ‘outro em si mesmo’, um estranhamento, uma perturbação e uma transformação de determinados modos de ser (BERNARDES; HOENISCH, 2003, p. 122-123).
Entendendo os modos de sermos humanos como inscrições, dobras, invenções que ocorrem em agenciamentos, é possível estudar e compreender que aparatos, maquinações, linguagens e tecnologias de governo configuram a maneira pela qual nos subjetivamos, nos relacionamos com um si. Seria o caso de atentarmos para dispositivos presentes em nosso contexto histórico-cultural. Figuras, imagens, vocabulários disponíveis através de meios diversos: textos, televisões, museus, universidades... Bruschi (2003) ressalta a importância da mídia na constituição de modelos identificatórios, propondo que poderíamos considerar nossos processos de subjetivação uma construção possível entre modos de ser disponíveis na cultura midiática, articulando também modos ainda não existentes nesta cultura, na medida em que cada um pode constituir-se, a partir de fragmentos, num processo criativo. Assim, de acordo com as perspectivas expostas até aqui, logo perceberemos quão difícil é manter uma coerência. Subjetivar-se está mais relacionado a um campo de estratégias e posições do que a possíveis essências de um “sujeito” (VEIGA-NETO, 2000; SILVA, 1997; ROSE, 2001a; 2001b). O “si” vai sendo construído à medida que vai sendo praticado em agenciamentos: quartos de dormir, prisões, supermercados, empresas, lojas de departamento etc. são alguns “espaços” que operam, administram determinadas formas de se relacionar consigo mesmo. Se algumas vezes essas relações tendem a estabilizar-se, sugerindo a impressão de que se tem “identidades”, ao nos voltarmos para a análise das práticas que estão operando no sentido de inventar e atuar sobre as formas humanas de ser em questão, a noção de interioridade se dispersa em estratégias de regularização de condutas, em dobramentos que produzem certas formas de se relacionar com um “si”.
Silva (1997) considera que, partindo da análise das concepções que sustentam perspectivas de “normalidade”, será possível compreender modos de ser “diferentes”, considerados “problemas”, quando relacionados a uma política e epistemologia do corpo normalizado. Em outros termos, o “problema” só é constituído em relação à normalidade. Só quando são instituídos padrões de condutas, modos de ser ditos “normais”, é possível pensar também no que deles se diferem, no que se cria no exterior das normas e das verdades instituídas.
Entramos, assim, numa perspectiva de formas de sermos humanos, engendradas em tecnologias de subjetivação, práticas que fazem circular e inventar modos de ser, posições. Um plano que oferece (frágeis) possibilidades de solidificar-se, limitar-se a (busca de) “identidades”, mas que também permite performances e posicionamentos diversos, fabricáveis e descartáveis, intercambiantes, móveis. Clarice Lispector bem caracteriza o ser humano na sua forma de ser: “uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo. [...] Mas sou caleidoscópica: fascinam-me as minhas mutações faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro” (LISPECTOR, 1998, p. 31).


Referências Bibliográficas

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BERNARDES, A. G.; HOENISCH, J. C. D. Subjetividade e identidades: possibilidades de interlocução da Psicologia Social com os Estudos Culturais. In: GUARESCHI, N. M. F.; BRUSCHI, M. E. (Orgs.). Psicologia Social nos Estudos Culturais: perspectivas e desafios para uma nova Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 95-126.
BRUSCHI, M. E. Estudos Culturais e pós-modernismo: Psicologia, mídia e identidades. In: GUARESCHI, N. M. F.; BRUSCHI, M. E. (Orgs.). Psicologia Social nos Estudos Culturais: perspectivas e desafios para uma nova Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 75-94.
DELEUZE, G. Foucault. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
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FIGUEIREDO, L. C. Matrizes do Pensamento Psicológico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
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FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
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_____. Tecnologías del yo y otros textos afines. Barcelona: Paidos, 1990.
_____. Hermenêutica do sujeito. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2004.
LARROSA, J.; LARA, N. P. (Orgs). Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998.
LEVY, T. S. A experiência do fora: Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003.
LISPECTOR, C. Água Viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: Perspectiva, 1998.
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_____.Inventando nossos eus. In: SILVA, T.T. (Org.). Nunca fomos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001b,p.139-204.
SILVA, T. T. A política e a epistemologia do corpo normalizado. Espaço, Rio de Janeiro, v. 17, p. 3-15, 1997.
VEIGA-NETO, A. Michel Foucault e os Estudos Culturais. In: COSTA, M. V. (Org.). Estudos Culturais em educação: mídia, arquitetura, brinquedo, biologia, literatura, cinema... Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000, p.37-69.

ricardo_pm@uol.com.br;
(*) Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP.

angela_flexa@yahoo.com.br.
(*)
Psicóloga - UFPA

*** CAPA do livro fonte da epígrafe do artigo.

29 de setembro de 2008

Desnutrir a pedra: o novo Andara visível de Cecim




Helder Bentes Blog Portal ORM




Depois de K - O escuro da semente (Ver o Verso, 2005) e de Ó Serdespanto (Bertrand Brasil, Rio, 2006), o paraense Vicente Cecim lançou seu mais novo livro na XII Feira Pan-Amazônica do Livro. Editado pela Tessitura Editora, de Belo Horizonte/MG, 'oÓ: Desnutrir a pedra' é o décimo quinto livro da obra 'Viagem a Andara oO livro invisível', que já completará 30 anos em 2009. Com apresentação assinada pelo o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, o livro chega às livrarias sob a indicação dos melhores críticos de literatura do Brasil e da Europa.
A literatura de Vicente Cecim não se reduz ao bairrismo em que muitos escritores paraenses caem ao tentar valorizarem o que é nosso. O caráter universal da obra literária é respeitadíssimo em Andara.
Este novo livro de Vicente Cecim é o monólogo de um pai perante a lápide de seu filho morto. A pedra da lápide é o espaço onde o filho “regressa à fonte de todas as imagens” e é a metáfora do espaço de leitura onde o (re)encontro entre pai e filho é também o encontro entre o homem e suas (in)finitudes.
Segundo o poeta Fabrício Capinejar, que assina a apresentação do livro, 'oÓ: Desnutrir a pedra é um livro secreto dos vivos mais do que dos mortos, de quem ficou com a dor e não pode fazer de conta que ela não existe'.
Esse processo de encarar a dor causada pelas irreversibilidades do existir, vivido pelo personagem, é o suporte da utilidade funcional dessa leitura. Pois quem nunca sofreu com a dor provocada por um fato irreversível? Que lições se pode extrair de um momento de dor?
Geralmente esses momentos nos privam de poesias e belezas e nos deixam meio lentos para o aprendizado que trazem. O novo livro de Cecim supre a necessidade do belo e da poesia que nos faltam na dor. O leitor, distanciado de sua própria dor ao apreciar a dor do personagem, consegue aprender e apreender com a dor já distante do momento em que doeu.
O pai que perdera seu filho encara a rocha, a cruz, explora o humano da pedra e remove as pedras do coração, narrando histórias sem fim porque a lápide, símbolo do fim, é desnutrida pelo narrar e miraculosamente convertida em símbolo de infinitude. Por isso, Carpinejar refere-se a ele como a 'Um homem que não se limita a trocar as flores e a água do jarro, e simplesmente decorar a tumba. Um homem assombrado de delicadeza, meticuloso no ar do verbo, que se refaz em cada frase, procurando articular o pensamento perfeito'.
Trata-se de um livro belo cuja beleza repousa na recusa do fim: 'Uma vez nascido, tudo é para sempre' – diz Cecim.

ENTREVISTA - Vicente Franz Cecim: paixão pela literatura






Depois lançar seu novo livro 'Ó Desnutrir a Pedra' na Feira Pan-Amazônica do Livro, em 24 de setembro de 2008, o escritor paraense Vicente Franz Cecim concede entrevista ao Portal ORM para falar de Andara – a metáfora da Amazônia produzida por sua imaginação criadora - literatura fantasma, crítica e transgressões literárias. Acompanhe a entrevista desta semana do Portal, em que trazemos um pouco da vida de um escritor.

Portal ORM - Você lançou uma nova obra na Feira Pan-Amazônica do Livro. A editora é mineira, a Tessitura. Por que lançar primeiro aqui?

Vicente Franz Cecim - Porque é a minha terra. Meus livros podem até ser lançados primeiro em outros lugares, mas sempre são lançados também aqui em Belém. Na Amazônia, que eu chamo de Floresta Sagrada, que lhes dá seiva.

Portal ORM - Todos os seus livros se passam em um lugar chamado Andara, que você começou a criar em 1979, com sua primeira obra: ‘A asa e a serpente’. O que é Andara?
Vicente Cecim - Andara é a Amazônia. Nasceu a partir da natureza amazônica, mas uma Amazônia sonhada, transfigurada em uma dimensão que simboliza toda a vida. Quero dizer, desde o que vemos, as coisas ao nosso redor, até o que não vemos, mas pressentimos. Os livros que escrevo, os chamados ‘livros visíveis de Andara’, são sempre convites a viajar além, até o invisível.

Portal - Você reúne todos os livros que escreve sob um título geral: ‘Viagem a Andara oO livro invisível’, que diz ser um não-livro e não existir. Qual a relação dos livros individuais que você escreve e esse grande livro, que vai surgindo à medida que seus livros são criados?

Cecim - Repare que no título geral existem um ‘o’ minúsculo e um ‘O’ maiúsculo, lado a lado. Digamos que o menorzinho somos nós, homens, e as coisas visíveis, efêmeras, passageiras, e o grande é a Grande Origem Invisível de Tudo. A mesma relação é a que existe entre os livros escritos e o livro não escrito de Andara. Os livros de Andara, no seu todo, tentam refletir o Real como ele é: uma parte revelada, uma não-parte oculta. No Ocidente, um equivalente é o Uno, de Plotino, no Oriente, é o Tao, conforme dele fala Lao-Tsé. Cada vez que um leitor está lendo um dos livros revelados de Andara, mesmo sem saber, está lendo simultaneamente a obra toda, fazendo a Viagem a Andara.

Portal - Você diz que faz ‘literatura fantasma’. É essa segunda leitura que você chama de ‘literatura fantasma’?

Cecim - Sim. Uma literatura que não existe, porque não é escrita. Somente imaginável.

Portal - Quantos e quais livros você publicou ao longo de sua carreira?

Cecim - Eles estão atualmente reunidos nos volumes ‘A asa e a serpente’ (3 livros), ‘Terra da sombra e do não’ (mais 4 livros), ‘Silencioso como o Paraíso’ (outros 4), ‘Ó Serdespanto’ (2), ‘K O escuro da semente’ (1) e agora este que está sendo lançado: ‘oÓ: Desnutrir a pedra’, o décimo quinto editado.

Portal - Há quem diga que os sete primeiros livros de Andara aboliram as fronteiras entre prosa e poesia. Na sua opinião, sempre houve essa divisão entre poesia e prosa na literatura de outros escritores?

Cecim - Veja, cada escritor faz o que quer, pode ou acha que deve com a sua literatura. A divisão entre prosa e poesia foi uma convenção gradualmente imposta à literatura. A prosa se dispõe a contar, a poesia se dispõe a cantar. Cantar e contar sempre andaram juntos, por exemplo, na obra de Homero, ‘Odisséia’, ‘Ilíada’, que são tão antigas quanto a Bíblia. Essa divisão é recente, não é natural e deve ser dissolvida. Faço a minha parte: desfaço essa fronteira. Para mim tudo se dá numa dimensão só, que já nem chamo mais de literatura, chamo de escritura. A palavra solta sobre a página em branco, em absoluta liberdade. Ela canta e ela conta.

Portal - Este livro que você está lançando, ‘oÓ: Desnutrir a Pedra’, você diz que é uma iconescritura. O que significa isso?

Cecim - Quando a própria escritura foi se esgotando à medida que eu escrevia os livros de Andara, surgiram cada vez mais páginas deixadas em branco nos meus livros. Nada demais nisso: quando a gente fala – embora falemos excessivamente e ouçamos muito pouco uns aos outros – também alterna voz e silêncio. Assim, passaram a se alternar palavra à páginas brancas nos livros. Então, eu senti necessidade de me voltar para a origem das palavras. E a origem delas é a imagem. Passei a falar, também, através de ícones. E surgiu uma nova escritura feita de palavras, páginas em branco e imagens. Assim foram escritos, primeiro, ‘K O escuro da semente” – editado em Portugal em 2005, pela Ver o Verso – e depois este ‘oÓ: Desnutrir a pedra’, que agora sai no Brasil pela Tessitura.

Portal - Apesar de todas essas transgressões dos padrões literários, você ainda conta histórias em seus livros, ou tudo está voltado agora para reinvenções de linguagem?

Cecim- Desde o primeiro, sempre contei, e agora, 29 anos depois, continuo contando histórias. Aprendi a contar histórias ouvindo as que minha mãe, a escritora Yara Cecim, contava a mim e aos meus irmãos Paulo e Elizabeth, para nos fazer dormir e sonhar outros mundos, outras realidades. Ouvir histórias, contar histórias é uma necessidade humana muito profunda. Amplia nossas existências, nutre nossa imaginação, nos leva além de nossas limitações naturais.

Portal - E qual é a história de ‘Desnutrir a pedra’ – aliás, um título curioso. O que há para desnutrir numa pedra?

Cecim - Tudo se nutre de sua própria natureza, daquilo que é em si mesmo. A água se nutre da água, o fogo se nutre do fogo. O homem se nutre de sua humanidade. A pedra se nutre de sua mineralidade, digamos assim. O livro conta a história de uma pedra que, por ter uma forma que lembra a forma humana, se põe a caminho para deixar a sua existência de pedra e se tornar um ser humano.

Portal - E ela consegue?

Cecim - Bem, acontece que os livros de Andara, além de fundirem prosa e poesia, também existem para propor inquietações e questões de natureza filosófica e mística. E, para além de contar essa história com uma linguagem nova, de palavras, imagens e silêncios, neste se apresenta uma questão à consciência do leitor: Devemos buscar ser o que não somos saindo de nós mesmos, ou devemos nos tornar cada vez mais o que somos, não nos abandonando, mas nos aprofundando em nossa natureza, na forma de realidade com que o Universo nos manifestou? Muitos de nós sofremos permanentemente essa angústia de tentarmos ser o que não somos, não é verdade? Nesse sentido, muitos poderão se ver nessa pedra que anda, em Andara. O que a espera? Só lendo o livro para saber.

Portal - Você tem editado seus livros também em Portugal. Alguns já saíram lá, mas continuam inéditos no Brasil. Há o caso de ‘Ó Serdespanto’ que, embora tenha sido apontado pela crítica portuguesa como o segundo melhor lançamento de 2001, esperou até 2006 para ter sua edição brasileira pela Bertrand Brasil. E ‘K O escuro da semente’ já espera três anos para sair no Brasil. O que você pensa do mercado editorial brasileiro? O Brasil é um país de leitores? Dá para um escritor sobreviver da literatura?

Cecim - Portugal é Europa, gerou Pessoa, lê Kafka, Beckett, Proust com naturalidade. No Brasil até se conhece Cervantes, mas quem já leu o ‘Criticón’, de Baltazar Gracián, tão fundamental quando ‘Dom Quixote’? O leitor faz a política editorial de um povo. O leitor português determina a qualidade editorial que eles têm. O nosso, apesar de termos gerado grandes escritores, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis, Jorge de Lima, ainda é tratado como consumidor, não como leitor, e o livro como produto. O processo leva o próprio escritor a ser tratado como um produtor de materiais para consumo. As palavras dizem tudo. Para viver espiritualmente da minha literatura, eu abri mão de viver materialmente dela. Os meus livros circulam livremente de pressões de mercado e editores. Eles são instrumentos para interrogar ou celebrar a vida. É o que me interessa.

Portal - Você concorda com a regionalização da literatura? Podemos falar em literatura paraense?

Cecim - A questão não é ser literatura regional ou universal. A questão é ser essencial, ou não. Essencial para quem escreve, essencial para quem lê. O Juan Rulfo é um escritor marcadamente mexicano, Guimarães Rosa é um escritor marcadamente brasileiro, e ambos são essenciais. Quase tudo o que tem sido publicado com características de literatura mundial, universal, desde que aprendi a ler, não tem a menor importância. Então, é como dizem os místicos: - O Verbo sopra em toda parte. – Sim, mas é preciso que ele sopre através de uma alma e de uma obra de arte, para que exista realmente Literatura.

Portal - Você foi premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte, que também já premiou nomes como Cora Coralina e Mário Quintana, e já foi aclamado por críticos como Leo Gilson Ribeiro e Eduardo Prado Coelho. Qual a importância disso para um escritor? Você acha que a qualidade de uma obra literária depende desse reconhecimento?

Cecim - Os prêmios não são o mais importante. O que realmente importa é se ver compreendido, é ter do outro lado do livro, não um crítico – sou a favor da abolição da crítica como instituição autorizada a dar a palavra final sobre uma obra de arte – mas uma espécie de companheiro de aventuras e descobertas.
Uma relação fraterna, cúmplice, não-institucional, humana. Aquela que Maurice Blanchot mantinha com os autores que lia. Nesse sentido, pessoas como o Leo Gilson Ribeiro, em São Paulo, Eduardo Prado Coelho, lá em Portugal, ou Benedito Nunes, aqui em Belém, morando logo ali, na Travessa da Estrela, foram grandes companheiros de viagem. Sou grato a eles e a alguns outros por não ter me sentido tão só, porque a viagem a Andara é uma aventura muito solitária.

Portal - Onde os leitores brasileiros podem encontrar as obras de Vicente Franz Cecim?

Cecim - Uma parte está no Brasil, outra em Portugal. Um dia, quem sabe, a viagem a Andara se encontre consigo mesma e seja reunida em um volume. Atualmente, só se chega ao conjunto pela Internet.

Portal ORM

Portal ORM

19 de setembro de 2008

Uma ponte entre a palavra e o silêncio Alberto Pucheu

Escrita vigorosa e inclassificável de Vicente Franz Cecim se apropria da prosa, do verso, da filosofia e do romance


Ó Serdespanto

Viagem a Andara oO Livro Invisível

Caderno Prosa & Verso, jornal O Globo, 28 de julho de 2007, página 6.

Diante do indizível, tudo o que se pode falar será sempre pouco, mas, justamente porque estamos diante dele, devemos falar, muito, para, de algum modo, redizê-­lo a cada instante, para mostrá-­lo enquanto o que, da vibrante materialidade da linguagem, se ausenta para que ela apareça em toda sua força. Escrever, então, é um gesto que, pelos ruídos da mancha negra da página, flagra o silêncio em sua fuga. Na linguagem que vemos, o rastro da que não vemos. Nos livros visíveis, os vestígios deixados pelo livro invisível. Se Andara é a Amazônia mítica criada por Vicente Franz Cecim, é porque, na encruzilhada entre o manifesto e o não-­manifesto, ela é vida. O livro se mostra como uma ponte entre a palavra e o silêncio, entre o visível e o invisível, entre o ser e o não-­ser, entre “a vida lá” e “a vida vivendo aqui”. E a literatura, como uma outra vida que insiste em tornar possível a experiência da vida como a vida é. No mito de Andara, a presença da escrita através da fábula: não é o escritor quem fala, mas as árvores, as aves, a floresta, é vida mesma quem fala ao homem para sua aprendizagem através das falas de Andara. Quando é o homem quem fala ou escreve, quando outro apelido de Andara pode ser Vicente, Franz ou Cecim, é porque, falando na seiva da linguagem, quem fala por esses apelidos já é Andara ou, como dito, vida. O livro­-floresta é o lugar que habitamos e precisamos habitar para saber da vida quem ela é e, sendo-­a, quem somos nós. Há muito, o projeto do paraense Vicente Franz Cecim é dos mais originais e ousados em nossa literatura. Se fomos obrigados a esperar primeiro a edição portuguesa de Ó Serdespanto, com o alarde maravilhado que lá causou entre as melhores cabeças pensantes, para, só então, termos o livro publicado por aqui, pior para nós, seus leitores, seus conterrâneos, que necessitamos de sua leitura como instigação ao que somos e ao que fazemos. Muitas vezes, somos lentos no que diz respeito a nós mesmos. O fato de um livro como esse, como toda sua obra anterior, não ser extremamente divulgado e valorizado entre nós ainda é fruto de um imenso desconhecimento que temos de nós mesmos e de certo provincianismo que – é bem verdade, cada vez menos – ainda resiste por aqui. Na orelha do livro, referindo-­se ao “thaumazein” grego, Benedito Nunes salienta com toda pertinência que Ó Serdespanto é um livro-­poema que tem uma origem filosófica denunciada pelo próprio título (além disso, as aves filosóficas que pousam pelas respectivas páginas são, explicitamente, Heráclito, Plotino, Novalis e Kant e, implicitamente, Heidegger e Nietzsche, dentre outros). Pelo menos desde Platão, a palavra grega para dizer espanto é a que assinala a origem da filosofia, o desde onde a filosofia nasce e que, nela, continua a existir em todo o seu percurso a cada vez que ela se presentifica. O filósofo e crítico paraense poderia ter acrescentado que, para Aristóteles, estando na origem da filosofia, essa mesma palavra está, igualmente, na origem da poesia. Na ausência de conhecimento, sem caminhos, sem saídas, perplexos diante da constante aporia que a vida nos impõe, diz Aristóteles, é através do espanto que, de certo modo, poetas e filósofos são o mesmo. Assim, Ó Serdespanto é o homem que, através do indiscernível entre o originário do filosófico e do poético (“Eu sou a origem. Eu estou Lá na origem de tudo”), faz a vida como ela é – Andara – comparecer no corpo do livro. Enquanto que, na hegemonia da história do pensamento ocidental, essas duas experiências do pensamento e da linguagem estiveram cindidas, Ó Serdespanto aposta numa junção entre elas, respondendo com exemplaridade à requisição feita por Giorgio Agamben quanto à “urgência para nossa cultura de reencontrar a unidade de sua palavra fraturada”. Para realizar da melhor maneira essa demanda, Vicente Franz Cecim faz da linguagem uma aventura e exuberância amazônicas: palavras-­valises, conceitos, personagens-conceituais, imagens, forte musicalidade, fábulas, mitos, sonhos, delírios, discussões filosóficas, palavras iniciando com maiúsculas no meio das frases, páginas em branco, a importância da diagramação, do vazio e das manchas negras das páginas... De fato, são muitos os procedimentos usados por este livro que se apropria da prosa e do verso (fazendo algo que, na maior parte do tempo, não é nem um nem outra), da filosofia, da poesia, do romance e da mística em busca da perfeição da linguagem e do pensamento, encontrando uma escrita completamente vigorosa e inclassificável.

Alberto Pucheu é escritor e professor de teoria literária da Universidade Federal do Rio de Janeiro


10 de setembro de 2008

Paisagem e Fonte Vicente Franz Cecim

















A colheita das paisagens



Para descer o céu à terra num antro mais cheio de murmúrios

aquilO

que morre nas flores
canta
um Rumor de luz


Eu escuto, na Residência da Semente Branca daqueles que tiveram o pé esquerdo devorado por ovelhas

Eu nutro: os caminhos apagados
Eu nutro: a mais antiga, a Visão que veio ao encontro dos que vão
em busca

da espera de Si mesmos


Eu não sou a semente
de uma intensidade nua de espinhos, eu não sou


Eu não sou













Fonte das constelações



Sem semear ossos no fim da tarde
e vindo ao encontro dos teus olhos no Caminhos das espreitas,

eu busco
o segredo luminoso
da
Tua
Água

Soprando as cinzas,
mais humano que o Limo


Este é o Passo de Sombras
Esta é a Noite em que o céu virá beber nosso rumor de terra



Aqui

Eu espero

Surrealismo & Imaginário Amazônico - Vicente Franz Cecim

A eternidade está sujeita ao tempo, graças à imaginação. Entendida desse modo,
produz um efeito mágico: não se sabe mais se é sonho ou se é real (...) A idéia do eterno se muda em ocupação imaginária e não se pode sair dessa disposição de alma:
sou eu que sonho ou é a eternidade que está sonhando comigo?

Sören Kierkgaard/O Conceito de Angústia


Em relação aos outros seres dos quais, à medida que ele desce a escada por ele construída, cada vez menos está apto a apreciar os desejos e os sofrimentos, é somente com toda humildade que o homem pode fazer com que o pouco que sabe de si sirva para o reconhecimento do que o cerca. Para isso, o grande recurso de que dispõe é a intuição poética.(...) Só ela nos provê o fio que remete ao caminho da Gnose, enquanto conhecimento da Realidade supra-sensível, “invisivelmente visível num eterno mistério”.

André Breton/Do Surrealismo em suas obras vivas


O homem precisa se deixar cair do ponto insustentável onde se instalou para ter o direito de adquirir asas. Será durante a sua Queda que irá descobrir sua Leveza possível. Assim agarrado
em seu próprio tronco, pendurado de si mesmo como se mantém, auto-suficiente fruta que não dá frutos, como poderá cumprir a sua missão de semear-se, de semear a coisa humana na Terra
e ser a chuva inversa dos Céus?

Vicente Franz Cecim/O alquimista luminoso do silêncio


DIÁLOGO DE IMAGINÁRIOS

Existe um Imaginário Surrealista? E existe um Imaginário Amazônico?
A resposta é: Sim. E, ao mesmo tempo: Não.
Sim: porque, ao se manifestar no Tempo, na História, em determinada época e em determinado território de cultura, o Imaginário Humano se reveste de aspectos exteriores os mais
diversos. A ele aderem os adereços com que vai sendo ataviado. E assim ele se mostra aos nossos Olhos de Ver o Visível.
Não: porque, embora se dando em condições exteriores que o revestem, e o atualizam, cada uma a sua maneira, o Imaginário Humano deriva de Matriz Invisível, Una e sempre igual a si mesma, que o institui desde a Atemporalidade das origens formadoras da Vida Visível.
Assim: o fato de o vermos em suas manifestações diversificadas, contextualizadas, não nos impedisse, ao mesmo tempo, de pelo menos intuí-lo como pré-existente às suas manifestações dadas aos sentidos humanos.
No que nos toca mais de perto, caberia fazer a pergunta:
Existe um Surrealismo Amazônico?Existe uma Amazônia Surrealista?
Desde o lançamento do Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite no já distante ano de 1983, durante o congresso da SBPC realizado em Belém, pressupondo que tenha esse direito como escritor da Amazônia, persisto em minha própria resposta: Neste Imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.Bastará deixar que ela nos diga algo.E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os individuais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a vida. É preciso dar-se, deliberadamente, a ela. E é preciso insistir: - Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor.
Diálogo de Imaginários?
Quem sabe. Sem esquecermos a advertência: Um lance de dados jamais abolirá o Acaso.
Acaso que é sempre Presença-Ausência nas veredas obscuras da Imaginação por onde se lança o homem, europeu ou amazônico, convertido em pura espreita humana, em Demanda de Luz.
Para mim, nem rotulados de surrealistas nem de naturalistas, preferia que seguíssemos, por entre o Natural & o Sobrenatural, a senda que um dia defini para mim mesmo com esta frase: A Literatura praticada como Ontologia, a Palavra praticada como Vida.


PARA SUA REFLEXÃO:

A vida é sonho e os sonhos sonhos são/Calderón de la Barca.

Somos um sonho de Brahman: quando ele adormece e nos sonha o Universo nasce, quando desperta, todo o Universo desaparece até seu próximo sonho/Vedas.

Somos somente agregados, serem sem vida própria, em si: nossa existência decorre da Originação Dependente/Nagarjuna.

Somos a Idéia de Homem, da qual provém o manifesto homem/Platão.

Vejo todo o Universo num grão de areia/Blake.

Somos feitos do mesmo estofo de que são feitos os sonhos/Shakespeare.

Só a limitação dos nossos sentidos nos impede de perceber que vivemos num universo feérico/Novalis.

O imperador sonhou que era uma borboleta e ao acordar não sabia se era um homem que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma borboleta que estava sonhando que era um homem/Chuang-Tzu.

Ali onde os anjos supremos, a mosca e a alma são semelhantes/Eckhart.

Tudo indica que há um ponto no espírito em que cessam todas as dualidades, todas as contradições/Breton.

O discurso mede quatro partes, das quais três não são postas em movimento, pois só conhecemos a quarta, que é a linguagem dos homens/Upanishads.

Ser é ser percebido/Berkeley

Belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva com uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação/Lautréamont.



O Olho das Metamorfoses/Contaminações de vFc sobre matrizes de Magritte e Da Vinci


TUDO VEM COMO SOMBRA DO UM *

Tudo vem como sombra do Um e para o Um
volta como sombra
Aqui, na breve Residência, a vida,
imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos,
as sombras estão no Vários,
e se tornam coisas
para se darem em alimento umas às outras, enquanto aqui permanecerem

podendo esse alimento ser
visível e invisível
e visíveis e invisíveis as bocas nas coisas, sempre famintas umas das outras

e também podendo ser os alimentos
bênçãos e venenos

assim como podendo ser as bocas por onde se colhe o alimento
abençoadas e venenosas,



havendo ainda os alimentos simulacros
e as bocas simuladas na colheita.

Quanto à permanência na breve Residência, a vida,
imersos nesta luz cheia de penumbras em que somos e não-somos, pois permanecemos sendo lá no Um enquanto aqui até parece que somos,
as coisas podem optar pela Fome umas das outras, e se devorando se devolverem como sombras do Um ao Um

ou pelo Jejum das outras.

Pois há um dom que nos é dado pelo Um
para alimentar a permanência:

aliado dos jejuns, esse Dom é o da
Amizade das coisas pelas coisas.



* De K O escuro da semente vFc Viagem a Andara oO livro invisível

5 de setembro de 2008

Doar Vicente Franz Cecim


Doar, a Guenádi Aigui:

De que te vestes e do que te despes/ Sonho: caminho no campo/ Daquele que antes passa não verás nem rastro

doar o centeio negro à claridade das manhãs o que sustenta um homem contra as tempestades não sabe ao certo do que ele é feito e no que se desfaz partes estão sempre desmoronando coisas estão sempre deixando de ser no corredor de ossos O Clarão e mais um filho é devolvido à relva O pavilhão de trevas Quase nunca é preciso soprar as cinzas dos olhos ninguém vem retribuir à terra a água colhida na palma da mão tu não avanças mais cantandohá a impossibilidade da semente vir a se tornar uma floresta sem ressentimentos tu não avanças mais cantando sem notar a caridade dos dias com o direito de ocultar todo horizonte com uma elevação de lágrimas Mas se sabia, desde os primeiros sinais, que não vieram, que os ventos varreriam a terra, cavando, até expor aos nossos olhos as esmeraldas deste funeral as esmeraldas deste funeral o centeio negro à claridade das manhãs já foi doado, e embora vozes se erguessem não deixaste O Doador de Sombras esses clamores vagos clarões Nem nuvem vã desceu até teus olhos os calcanhares com que pisaste o canto dos que se erguiam em bando em defesa dos dias e o leito de sombras foi armado lá ondedo Alto semeamos ossos As doações o que sustenta um homem contra as tempestades não sabe ao certo do que ele é feito e no que se desfaz Ah de quem foi este pé que se recusa a dar um passo ah essas mãos trêmulas depostas aos nossos pés Do Alto, semeando ossos As doações nós nos dizíamos Eis o beber a seiva derramada O Pontilhão Escuro está cantando ao vento: um dia a água do corpo correrá ao contrário, vindo ao teu encontro, e tuas aves serão feitas de terra Eis o beber a seiva derramada ah de quem foi este pé que se recusa a dar um passo Mas a criança há de nascer mais antiga sob um sol de cinzas se desfazendo sobre nós partes estão sempre desmoronando somos, em nós, as doações recentes, as recém-nascidas doações estão sonhando, indo para o mais antigo Campo de Miragens nu O Doador de Véus E o mais antigo desmorona aos nossos pés se se recusam a dar um passo antigo se tudo passa, o lentamente, em nós coisas estão sempre deixando de ser Se as Fontes imóveis de repente cantassem em nós ah, as cantantes caladas oh se cantassem de repente A verdade é que o pé tateia o limo a mão espera o líquen dos afagos E tudo bem silenciosamente Este desejo é longo quando passo através da opaca cintilância Ah, a Opaca cintilância desses filhos mortos semeados pela relva quando passo no corredor de ossosum olho ainda cintila a Lã que ama o fogo sem balir O Clarão o fogo-fátuo destas fontes Eis o beber a Seiva, a seiva derramada A água do corpo não correrá ao contrário em nós tremia um mineral profundo e mais um filho é devolvido à relva quando menos se esperava tanto espanto A Voz soluça entre gorjeios Quem sabe a santidade ser O osso leve de um filho devolvido à Relva O pavilhão de trevas está se abrindoDobrados diante dele joelhos de fruta Para colher a melhor flor da estação, quantas sementes esperando a Seiva lenta, aguardando um pranto Quase nunca é preciso soprar as cinzas dos olhos Quase nunca é preciso lançar ossos no abismo Estamos sempre dispostos a temer as manhãs estamos sempre nas manhãs, tremendo ninguém vem retribuir à terra a água Colhido na palma da mão tem um abismo É essa a fonte do coração oco entre miragens Tomo, de ti, a tua mão na minha Estas ruínas ficam bem caladas quando passo doar o centeio negro à caridade das manhãsSe doendo sem dOr partes se dando: Do Corpo do poema em si, ao fora de si, ao Que?m buscando Em sonhos, a Margem brandamente escurecida sem o direito de ocultar a caridade dos dias mas com direito a vislumbrar todo o horizonte velado, a Elevação de Lágrimas Fonte do coração, do Oco entre miragens as esmeraldas neste funeral As esmeraldas deste funeral



De: Viagem a Andara oO livro invisível

Ave, Lua, Unicórnio




Kafka: desenhos e túmulo




Não basta olhar sem ver


Compaixão: Imagem de Bruno Cecim

Não basta olhar sem ver


Minhas Fontes: Imagem de Bruno Cecim

Suhrawardi e o Homem de luz
















Buddha: Odilon Redon



Apresentação ao Xeique Suhrawardi

Suhrawardi (Shihab al-Din Abu al-Futuh Yahya ibn Habash ibn Amirak al-Suhrawardi ou Sheique al-Ishraq) nasceu no noroeste do Irã, próximo do Azerbaidjão, por volta de 1155. Seus biógrafos indicam que Suhrawardi manteve contato com muitas linhas filosóficas emergentesem seu tempo e parece ter estudado filosofia e teologia com Majd al-Din al-Jili. Sua vida foi bastante curta e teve um final trágico. Sua filosofia era ampla demais para o tempo e lugar onde Suhrawardi vivia. Ele foi incompreendido e morto em Alepo, na Síria, por Saladin, ao redor do ano 1191. Sua obra permanece viva até hoje e possui uma qualidade notável para alguém que morreu aos 36 anos de idade. Suhrawardi buscou unir em sua doutrina as influências místico-filosóficas mais importantes de seu tempo. Entre elas, os continuadores da escola de Avicena, os cristãos nestorianos e provavelmente o ramo shiita associado aos Irmãos da Pureza. Muitas vezes foi visto vestido como um dervixe, participando de seus rituais. Porém, a maior influência de Suhrawardi parece ter sido o sistema zoroastra. O Azerbaidjão foi um dos focos mais importantes da crença zoroastra e esta parece ter sido a principal inspiração de Suhrawardi ao montar seu sistema de crença, conhecido como Ishraq. Sua filosofia, em sua teoria, se parece em muito com a dos gregos, mas suplanta-os devido à força experiencial que seu material destila. Mais do que um conjunto de idéias, Suhrawardi aponta para estados de ser e para a busca por estes estados. Sua linguagem mistura-se com a sabedoria atribuída a Hermes e ao mesmo tempo à beleza poética da busca pelo Amado dos poemas de Jalaludin Rumi. Mas seu sistema é bastante complexo. Herda da crença zoroastra a doutrina das Luzes e do Homem de Luz e a Angeologia e Cosmologia associadas, e herda do sufismo a busca pelo estado de união com o Criador. Ishraq é o termo que designa "a Luz do Sol-Nascente". É também a luz do "Oriente", não o geográfico, mas o metafísico, como um símbolo do ponto onde a Luz nasce. Trata-se aqui de atingir a visão interna da Luz da luz ou da Luz de onde se originam todas as luzes. Suhrawardi correlaciona esta Luz com a Luz da Glória, o Xvarnah, do sistema zoroastra. Sua filosofia busca orientar a Alma em direção a sua origem "oriental" e por isso, é iluminadora. Correlaciona a luminosidade emergente com os graus de evolução possíveis ao ser humano, atingidos na busca por galgar os estágios espirituais que o aproximam de sua origem celeste. Seu trabalho nos remete à figura do Anjo-Guia da humanidade. Intitula-o também de Doador de Formas ou Sabedoria Eterna e de Agente da Inteligência. Correlaciona-o com Gabriel e com o Espírito Santo e ainda com Sraosha da doutrina Avesta. Ele seria aquele que confere à humanidade a Revelação ou o Conhecimento que a orienta na direção de sua origem. Este Anjo relaciona-se com o "pai espiritual" do homem, pois dele herdamos a capacidade presente emtodos os níveis das hierarquias superiores de nos orientarmos no sentido de nos transformarmos, expressando assim, nosso desejo pelo Retorno. Há um elo indissolúvel entre a busca pelo Anjo e a busca por si mesmo. Impossível não recordar aqui da afirmação: "quem conhece a si mesmo (sua alma) conhece o seu Senhor". Assim, esse Anjo que guia a humanidade se individualiza frente ao discípulo como a sua Natureza Perfeita e se expressa como o Homem de Luz. E mais, em alguns relatos, encontramos que ao se deparar com a imagem do Homem de Luz o discípulo se surpreende ao observar nele, a própria face. Tal entidade nos remete a nós mesmos, ou dizendo melhor, a um estado bastante elevado mas possível ao nosso ser. Trata-se pois de alinhar-mo-nos a ele, ou à direção a qual ele se volta perpetuamente. Assim, para o sheique al-Ishraq, a origem do homem e o seu destino são o mesmo. E mais, entre o Anjo e a humanidade existe uma certa solidariedade em termos da busca pelo retorno, pois ela será sempre a mesma, qualquer que seja o nível analisado. A alma revestida então, pela Luz divina é correlacionada com o termo Sakina, ou a habitação permanente desta Luz. Este termo (em árabe) possui seu correspondente hebraico em Shekinah, a morada. E mais, nos remete ao conceito da Presença divina, que agora possui um templo, a própria alma do indivíduo, capaz de servir-lhe de morada. A leitura meditativa do material de Suhrawardi é sempre bastante surpreendente, pois seu modelo contagia o estudante de forma a transferir-lhe os estados que o próprio Suhrawardi deveria experimentar. Isto comprova que, mais do que apenas um sincretismo de idéias, a genialidade e elevado nível espiritual de Suhrawardi foram os verdadeiros responsáveis por sua doutrina notável.


Texto: Anônimo.

4 de setembro de 2008

Kafka: menino e desenhos


















Vicente Franz Cecim: Biobibliografia











O AUTOR & A OBRA




Vicente Franz Cecim nasceu na Amazônia, em Belém do Pará, no Brasil.
No caldeirão de uma escritura em absoluta liberdade, a literatura como alquimia abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural, o profano ao sagrado, e se lança em intensa busca do sentido metafísico do ser e da vida. Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou uma longa obra que até hoje continua criando: Viagem a Andara, o livro invisível, em que transfigura a sua região natural, a Amazônia, em Andara: uma região-metáfora da vida em que o sobrenatural emerge em epifania. É onde ambienta todos os seus livros. Andara sendo a Amazônia vista com olhos mágicos, como já foi dito, também é literatura fantástica, mas à medida que individualmente os livros visíveis de Andara vão sendo escritos, deles surge o livro invisível, que já é literatura fantasma, segundo o autor, o não-livro, que não é escrito: corpo de um corpo que se sonha. Em 1980, o segundo livro individual de Andara, Os animais da terra, recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Apca – Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara, o livro invisível (Editora Iluminuras, São Paulo) reunindo os 7 primeiros livros de Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca. Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo) reunindo mais 4 livros individuais de Andara. Em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, publicou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como um dos melhores livros do ano. Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os 7 primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e Terra da sombra e do não (Editora Cejup, Belém). Em novembro de 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura, também em Portugal: K O escuro da semente(Ver o Verso, Maia). Em 2006, saiu a edição nacional de Ó Serdespanto (Bertrand Brasil, Rio). Por ocasião da publicação dos seus primeiros livros, o autor declarou: Prefiro interrogar os limites e a existência da própria literatura. E insinuar, para além da literatura fantástica, o advento de uma literatura fantasma. E, em recente entrevista, disse: O natural é sobrenatural, o sobrenatural é natural. Foi o que o Andara me revelou. Já não faço Literatura: faço Escritura. O passo mais recente de Cecim em Andara, através da carência das palavras, que o levou a eleger a forma híbrida de escritura e imagem que denominou Iconescritura, resultaram também os livros oÓ: Desnutrir a pedra, lançado pela Tessitura em 2008, e o inédito Breve é a febre da terra.


andara@nautilus.com.br
vfcecim@hotmail.com

Tessitura lança novo livro de Andara

oÓ: Desnutrir a pedra
Vicente Franz Cecim

Viagem a Andara oO livro invisível


A Tessitura, de Minas Gerais, lança, em setembro de 2008, oÓ: Desnutrir a pedra, décimo quinto livro visível de Viagem Andara oO livro invisível, de Vicente Franz Cecim.








É a segunda criação, em Iconescritura, do autor, e foi antecedida por K O escuro da semente, lançado pela Ver o Verso, em Portugal, em 2005, próximo lançamento da Bertrand Brasil que em 2006 publicou a edição brasileira de Ó Serdespanto.













Um fragmento de oÓ: Desnutrir a pedra

Isso, o Aquilo, o Sem Nome, O



O que faz a árvore, o que faz o vento, o que faz eu me perguntar
essas coisas?
- Lá.
Vê: aquela árvore, lá, se movendo.
Vês, vendo?
Parece coisa de sonho, não é? Aquela árvore longe, no horizonte
se movendo.
O que move a árvore?
Para isso a gente tem uma resposta humana na ponta da língua:
o vento. Outro Verbo.
Mas, ah, o que sopra o vento?
Para isso, eu não tenho a resposta.
Tu tens?
Ninguém tem, te digo.
É o Isso, o Aquilo, o Sem Nome,
e de onde vindo ninguém sabe, pois só sabemos que ao chegar
aqui vai logo se escondendo de nós sob muitas formas, as Várias:
aves, estrelas, insetos, peixes, e de vento vento
Pois se até sob a forma humana se esconde, em nós.
E se aquela árvore, lá, parar de se mover?
Para onde terá ido?
Diz-se disso: o vento sopra em toda parte, o vento: o Vento.
Da minha boca, agora mesmo ele está soprando para ti sob a forma
destas palavras, onde também está e se mantém, escondido. Abro
a boca, sopro um pensamento, e eis: ele aparece, mas desaparecido,
pois só percebes as palavras.
Ouve, assim, com a tua mão roçando a minha boca.
É a voz do vento das palavras.
Sentes?
Ah, olha: agora a árvore parou de se mover.
Vês? Não-vendo¿
Ele terá ido embora dela, ou se mantém lá, nela, até a próxima
brisa, ventania, sopro disso que nos sopra? Escondido¿
São muitas as perguntas que nos fazemos só de olhar as coisas,
não é?
Então, essa que eu me faço agora: esse vento que sopra pela
minha boca sob a forma das palavras com que estou te perguntando
isto: ele é o mesmo vento que, antes, soprava lá aquela Árvore, longe,
no horizonte, e agora veio soprar em mim, através de Mim?
Pudesse, pois se Isso sopra os ventos um só, se dispersando em
vários istos, vários ventos, peixes, homens
Ou será que depois que deixa de ser o Isso ele é, em cada isto,
um Isto que não se compara a nenhum outro?
Então, são muitas as perguntas que fazemos a elas, sós, olhando
as coisas
As Coisas.
Elas, de Lá, nos olhando.
Aqui.
E aqui: um tU e um eU. Peixes homens
Ah, somos mesmo dois homens conversando, ou só um? O
Mesmo.
O Um¿