3 de março de 2011

Sobre o Habitante de Desvios


FRAGMENTO DE ENTREVISTA
de Vicente Franz Cecim a Maria João Cantinho



Há coisas que se dizem por sua própria Etimologia, é assim que elas mais nos falam e não devemos falar mais nada, traduzir por outras palavras, o que elas em si já dizem. São intraduzíveis. Não achas? Apenas quis dizer com isso que aguardo um Tempo em que seja a ‘Palavra praticada como Vida, a Literatura praticada como Ontologia.’ Escrevi isso na apresentação de um livro e em outros lugares por aí. Então, deixemos de lado a conformação verbal ‘onto-introspectivo’. Já temos uma tarefa imensamente Perturbadora de que devemos nos ocupar agora: o Desvio. - Desviar de que, desviar para Onde? Já não estamos no Desvio, já não somos o Desvio humano semeado num Universo que estranhamos, e, por isso, por esse Estranhamento, compreendemos ou julgamos compreender? Contraímos uma familiaridade, por exaustão de convivência, e acabamos por nos empobrecer de estranhamentos. Mas familiarizados, ainda estranhamos, e estranhando a nós mesmos – existe Enigma mais impenetrável do que o homem? – buscamos nos familiarizar com nós mesmos. Vê: uma Árvore já está na Via do seu ser, ela é essa Via. Uma Pedra também. Uma Ave. Mas o Homem, qual é a sua Via? Um Homem é habitante de desvios incessantes. Uma vez ouvi o angélico escavador em espelhos Robert Bresson, citando alguém que não lembro, dizer: ‘- É preciso desviar pelo saber.’ Fiquei pensando: - Mas a qual saber ele se refere? É possível obter um Saber numa vida que se parece tanto um tecido de Sonho, a não ser o Saber que sonhamos e Somos Sonhados – e talvez sonhemos a nós mesmos? Nossa natureza é desviante, não nos é dado um Saber Fixo, jamais – Jamais. Embora seja uma verdade vertiginosa aquilo que Keats vem nos dizer assim: ‘A thing of beauty it’s a joy forever’/’Um vislumbre de beleza é uma alegria para sempre.’ Não sei se isso é uma Condenação ou uma Graça. Só sei que Andara é Busca & Desvio ao mesmo tempo, não são oposições que se negam, antes, se complementam, se complementem, é pelo que espero – e que nela, Andara, tudo se dá buscando no labirinto de um Desvio e se desvia incessantemente no desvio de uma Busca. Não sei porque as coisas são assim. Quando soubermos, se um dia isso acontecer, então fica a interrogação: - Para que mais continuar praticando a Literatura, mesmo como Ontologia, pois já teremos chegado, ou melhor: - Retornado, à pura Ontologia, que de si não se desvia, sob pena de não ser? Ou ela é a mais perfeita forma de Desvio a que estamos destinados? Blanchot? Esse ‘Diálogo Infindo’ de Blanchot eu fui buscar na estante e tenho ele agora aqui comigo. Abro ao Acaso. E, curiosamente, o que acho não são palavras de Blanchot, mas, na epígrafe do livro, estas palavras de Nietzsche: ‘- Isto é uma bela loucura: falar. Com isso, o homem dança em e por cima de todas as coisas.’ Mas em outra epígrafe, ao seu lado, já ouço a voz de Mallarmé resmungando em êxtase: ‘- Esse insensato jogo de escrever.’ A Insensatez é se manter no Desvio, então? Por outro lado, sem Insensatez não há, não haveria Literatura, e nesse sentido é a Insensatez da Literatura que pode nos desviar do Desvio. Ao mesmo tempo que nos confirma nele. – Se recusar à fixidez do Cânone, de qualquer cânone, suspender a linguagem para escutar o vôo inaugural. Voar sempre o primeiro vôo, que todo novo vôo seja sempre o primeiro vôo. Sim, é disso que se trata. No segundo livro visível de Andara, ‘Os animais da terra’, tão antigo, de 1980, no entanto ainda está escrito e isso não mudou com a minha recente ‘transcriação’ dos livros: ‘embora a ave mais bela seja aquela que se recusa a voar.’ Posso encerrar com uma outra frase, esta efetivamente de Blanchot no ‘Diálogo Infindo’? Eis, está na página 41 da minha edição pela Monte Ávila, Venezuela, 1996: - ‘O céu é azul, é azul o céu? A segunda frase não retira nada da primeira, ou é um retirar como um deslizamento, como uma porta que gira em seu eixo silencioso. A palavra ‘é’ não foi retirada: só foi aliviada, feita mais transparente, proposta a uma dimensão nova.’ - Maria, suspeito que é da palavra ‘é’ que a Literatura deve suspeitar sempre, porque a Literatura é no máximo um pequeno espelho colocado diante de um imenso Espelho, certamente um Simulacro da vida vivida, ou Sonhada. E esse ‘é’, é onde: no Onde? Podemos tentar vislumbrá-lo, mas isso já não é viagem linear para a Literatura Canonizada, com suas fronteiras mortas de gêneros, normas, regras, cultos – ao contrário, é um movimento que se atira contra a própria Instituição chamada Cultura – é andasse, andaríamos, é – Se eu andara: é Andara – Tempo da Hipótese, se indo cada vez mais para o abismo ou céu aberto da Pura Escritura e para o Silêncio, sobretudo para o Silêncio, o Advento do Silêncio que há de vir – por ele, espero e não espero – pois a meta sem-meta é permitir que o Vento: o Verbo, mas já sem voz, sopre um dia que talvez nunca virá através das Ruínas das palavras da própria escritura, como atualmente já sopra nas ruínas comoventes da literatura. – Percebemos essa brisa, essa aragem que nos chega do Futuro?




Benedito Nunes: O Sábio Jovial






Um homem sábio e amigo de todos. Assim o escritor Vicente Franz Cecim se referiu a Benedito Nunes após a solenidade na Igreja de Santo Alexandre. “Era um amigo sábio, muito generoso, fiel, alegre, e que nos deixava alegres. Perto dele nos sentíamos como num ninho, abrigados e alimentados. Do centro, onde ele estava, captava os saberes, a luz, o conhecimento, e nos alimentava”. Todos os depoimentos sobre Benedito Nunes destacaram sua simplicidade. Para Vicente Cecim, essa era uma de suas características mais marcantes. “Benedito saiu da vida material como uma criança, mais simples do que quando nasceu. Tinha uma sabedoria autêntica, sem nenhuma vaidade, e nos inspirava amor, gratidão e admiração”. Cecim observou que nem sempre Benedito Nunes conversava sobre “coisas sérias”, por nunca ter separado o saber elevado do saber cotidiano. “Falávamos do saber, da filosofia, da arte, mas também de coisas tolas, do cotidiano, com espontaneidade”. Para o escritor paraense, o filósofo faz agora “um retorno à origem”. “Não vejo a morte como um fechamento, mas uma grande abertura para o cosmos, para o universo. É certo que uma parte fica na Terra, mas cessam todas as limitações que ainda pudessem existir para um homem”.


Vicente Franz Cecim/DIÁRIO DO PARÁ,1/3/2011