29 de julho de 2009

O que disse em chinês Lao Tsé ao ouvido grego de Plotino































- Do Uno,
nos adensando,
viemos à Dispersão
- pelo Tao,
rarefeitos,
voltamos
à Origem Sutil.




Diálogos com sombras
I: CAMINHOS DE MÃO ÚNICA
vFc

18 de julho de 2009

para tocar a Sombra de uma esfera

Vicente Franz Cecim




estás em Fuga, e contigo vai a Terra: o Ninho, e as estrelas
te vêem passar sem um grito

Sombra

onde a alma, a Ave põe Seu Grão de luz



Não foi inesperado te sentires vivo e haver
Mãe

no Centro

toda a colméia de Ossos se erguendo em Ruínas para celebrar
a Voz


Alento de Véus,
a Lua,

quando passas


mais vermelha que o Coração da Noite
uma asa retorna ao Ovo da Aurora: Passagem, e Lá, Silêncio sem regresso



Louvor de nada, quanto Espanto a repousante Residência



Posto fora do alcance de si mesmo, agora

como fará para se fazer
o Mal


nenhum rumor no Cristal da

Fonte

















Hubble: A nebulosa Carina gerando novas estrelas

16 de julho de 2009

Muro branco das idades

Vicente Franz Cecim



e se vier em ondas, como Lama silenciosa,

não ignora
o Dom da Água

que adormeceu na concha da Tua mão
vazia


e olha, da Face mais alta, esse
fruto escuro com temores de Máscara que se
desprende,

e deixa que passe: é Luz, que caia através de Ti



Não te desvies

Nada pode esse rumor de rio em ruínas
contra

o Limo das ramagens
dos Teus sonhos



Escuta e doa
a Revoada à Ave ausente, alguém celebra a Cerimônia das Sombras
Diante de ti

há um homem, de lado, e um Olho que cintila fechado pelo Sol
que de uma quina do Céu te Eleva,

para que não voltes atrás de Ti


Para que não te Seles

na Catedral do Bosque




















15 de julho de 2009

Alguns caminhos da Literatura Brasileira atual





* Ersher




















Rodrigo Petronio

Autor defende que há um movimento forte da literatura brasileira das últimas décadas que pode ser articulado em torno de três grandes vertentes: imagética, metafísica e participativa.



Toda a pretensão à totalidade é falaciosa. Essa é basicamente a crítica de Levinas a Heidegger e à ontologia. Embora em um escopo filosófico essa crítica possa ser refutada de inúmeras maneiras, no tocante ao presente ensaio, que pretende abordar a literatura brasileira atual, ela é lapidar e incontornável. Redundante dizer que é impossível dar uma visão exaustiva da literatura produzida hoje no Brasil no espaço de um texto. E o simples fato de pretendermos isso evidencia má-fé ou ingenuidade, sendo que se pode bem pensar a ingenuidade como uma variante idealizada da má-fé. Tendo isso em vista, optei por comentar alguns autores deliberadamente de meu gosto e que estejam vivos. Assim, saímos da universalidade arbitrária do conceito e voltamos, felizmente, à doxa dos sofistas. Tudo uma questão de opinião.

O que tenho percebido é que há um movimento forte da literatura brasileira das últimas décadas que pode ser articulado em torno de três grandes vertentes. Chamo-as de Imagética, Metafísica e Participativa.

Elas podem ser insuficientes sob muitos aspectos, mas têm a virtude de conseguirem coadunar em si autores bastante diversos sem desfigurar suas especificidades. Por literatura de imagem, há que se deixar claro, entendo aquele tipo de produção de alto poder plástico e pictórico, na linha de uma radicalização do ut pictura poesis, poesia como pintura e pintura como poesia, ou seja, um tipo de representação que, em termos técnicos, tende sempre a resolver mesmo os conceitos mais gerais e abstratos em imagens. A imagem é produtora do real, está ligada à fatura da obra e à poética dos artistas. Não tem nada a ver com Poesia Visual, que seria um domínio à parte, com suas regras próprias.Já a vertente metafísica seria aquela que se vale de certo caráter anímico ou ancestral, tão caro à cultura brasileira, plasmando-o em poéticas de forte pendor transcendental, órfico, mítico e iniciático. Há aqui a marca indelével da cosmovisão própria a cada autor e a obra tenta sempre retratar o nosso horizonte existencial em um enquadramento o mais amplo possível. Por fim, por linhagem participativa, entendo aquela que se funda nas questões históricas e políticas do mundo atual e do Brasil, em especial, e tenta pensar a poesia em sua dimensão ética e estética. É óbvio que não são categorias puras e muitas vezes temos hibridismo, sobretudo na poesia de imagem de extração surrealista, como veremos. A divisão é apenas didática, para facilitar a visualização do leitor. Vamos então a elas.




VERTENTE METAFÍSICA



CASTRO CHAMMA: Começo a falar desta vertente por um nome que é um dos mais complexos da cena atual e, ao mesmo tempo, como bem assinalou o excelente crítico André Seffrin, um dos mais injustiçados: Foed Castro Chamma. Desde a publicação de O poder da palavra, em 1959, Foed vem sedimentando uma obra poética praticamente solitária. Dono de amplos vôos criativos e de um imaginário alimentado na alquimia e na cabala, sua poesia tenta recuperar um sentido mágico das palavras e, por meio delas, devassar uma espécie de realidade anterior, que se oculta, opaca sob o véu dos sentidos e imersa no sonho. Poeta culto, cuja poesia dialoga, em reminiscências, não só com os grandes nomes do pensamento e da poesia ocidentais, mas também com uma corrente hermética subterrânea, dos tratados de magia e alquimia aos grandes místicos, Foed parece viver a dimensão épica do Espírito em suas sucessivas encarnações no tempo. O arco e a lira de sua poesia apontam sempre em direções alegóricas que tentam subsumir em si essa tensão: o Sonho, o Real, a Sombra, o Duplo, o Espelho, o Tempo, o Fogo, entre outros. Tal qual um Blake moderno, Foed é um arquiteto do seu próprio castelo de mitos particulares; essa sua atitude representa não só sua recusa radical de todas as convenções sociais, que são, para ele, nada mais que a ilusão cordata com a qual nos iludimos mutuamente, mas também o ponto-de-fuga ígneo onde a própria poesia se apresenta como uma espécie de redenção e de vivência extemporânea, para falar com Nietzsche. Depois de uma série de livros admiráveis, o ponto máximo de sua atividade se dá com Pedra da transmutação, publicado em 1984, poema cosmogônico em dez mil decassílabos brancos que descreve a origem do Universo, palmilhando aqueles espaços infinitos de que nos fala Milton. Ao mesmo tempo, a obra de Foed tem uma circulação bastante restrita, ainda hoje à base de tiragens artesanais, a ponto do crítico Carlos Newton Jr. caracterizar o seu isolamento como um crime contra a literatura nacional. Assina traduções em versos das Bucólicas de Virgílio, de epigramas de alquimia e de obras de línguas modernas, além de ter um trabalho como ensaísta. Trata-se, senão de um dos grandes, ao menos de um dos mais complexos e enigmáticos poetas da língua portuguesa em atividade.


Em sentidos diferentes se direcionam as obras de dois grandes autores: Ariano Suassuna e Vicente Franz Cecim.


ARIANO: A despeito de suas opiniões idiossincráticas e de seu ufanismo, Suassuna vem construindo uma das obras literárias mais sólidas dos últimos tempos. Sua obra-prima, Pedra do reino, é um romance-monumento onde ele revisita todo o imaginário popular do Nordeste, desenvolvendo fatos maravilhosos com engenhosidade e humor. Sua obra deita raízes profundas no romance picaresco espanhol e na tradição do romanceiro ibérico, além de dialogar verticalmente com a formação cultural do Brasil no que ela tem de mais ancestral e atávico. Foi um dos idealizadores e protagonista do movimento Armorial, lançado em 1970, cujo objetivo era reunir poetas, escritores, músicos, artistas plásticos e dramaturgos em torno do ideal de aproveitamento do conteúdo mito-poético da herança popular e folclórica brasileiras, bem como utilizar os componentes mais profundos desses aspectos da nossa cultura na arte. O resultado plástico e literário desse movimento é de grande valor, justamente por conseguir incorporar esse substrato artístico, muitas vezes anônimo, mas que vinha sendo amadurecido, geralmente de maneira subterrânea, ao longo de séculos, e que tem suas raízes profundas na própria história da Península Ibérica e no processo colonizador das Américas. Foram partícipes do Armorial alguns grandes artistas plásticos brasileiros da atualidade, como Francisco Brennand e Gilvan Samico. Suassuna também é dramaturgo, autor do Auto da Compadecida, peça teatral de grande êxito, que já teve inúmeras montagens, e cujo protagonista pode ser comparado aos pícaros da literatura espanhola. Com um trabalho também em pintura, que ele define como Iluminupinturas, misto de iluminura com pintura, o autor congrega imaginação transbordante, humor, nonsense, mitologia e magia das crenças religiosas populares a um amplo conhecimento da grande literatura, sobretudo a de língua portuguesa. Suassuna é um nome de proa da literatura brasileira atual. E há quem diga que o único ponto de comparação de Pedra do reino seja Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, publicado em 1956.



CECIM: Já a obra de Franz Cecim se desenvolve em uma direção mais existencial e chega a ser difícil defini-la nos limiares da prosa e da poesia. Escrita de rupturas e de vertigens, Franz Cecim escreve uma única obra, Viagem a Andara, que se subdivide em diversos livros. O palco mítico de sua prosa é a Amazônia, mas estamos muito longe sequer de vestígios de literatura regionalista. O autor fala sempre na Floresta Sagrada. Trata-se de uma floresta totalmente alegórica, e é nela que se desenreda a vida de seus personagens e seu texto-vida insurrecto, como o definiu certa vez Benedito Nunes, um dos maiores críticos brasileiros em atividade. Tanto que por muitas vezes sua prosa é auto-referencial: diz o que é o livro de Andara e o que vem a ser Andara, como em um dos livros, intitulado A asa e a serpente, mas sempre de maneira elíptica, tentando produzir um isomorfismo entre o real e o imaginário, entre os personagens da trama e o enredo da vida empiricamente situada. Mais do que uma filiação à literatura fantástica, que levou a literatura da América Latina a um conhecimento de nível internacional, Cecim reivindica uma literatura fantasma: aquela que só é legível, não em termos icônicos nem simbólicos, na famosa distinção de Peirce, mas sim indiciais e residuais. Uma prosa-poesia que deixa vestígios do ato criador em cada linha. Uma poesia-prosa que lida o tempo todo com a dimensão transcendental da representação e não está interessada no que é verossímil, no sentido clássico e aristotélico do termo. Uma escrita que deixa rastros do sangue do escritor na página e da corporalidade de seus personagens na escritura. Como notou com lucidez o crítico Leo Gilson Ribeiro, há algo na literatura de tipo realista, aquela que se preocupa com o registro fidedigno das disparidades sociais, que não consegue dar conta da aflição estrutural e existencial do homem em estado de abjeção. Só uma prosa que bebe em correntes arquetípicas profundas, como a de Cecim, e, para lembrar uma escritora da mesma família espiritual, Clarice Lispector, é capaz de solver esse impasse formal e dar conta da amplitude ética e existencial dessa realidade. A melhor maneira de visualizar algo parecido com a sua literatura é cinematográfica: Andrei Tarkóvski.


Descontinando horizontes em enquadramentos existenciais e simbólicos.


Essa inflexão mítica, que descortina horizontes em amplos enquadramentos existenciais e simbólicos, parece ser fruto de uma inclinação natural da literatura e das artes do Brasil. Podemos aventar a hipótese de que isso se deva à própria condição antropológica do país, à diversidade de raças, credos, ritos, crenças e culturas que aqui se misturaram, preservando, porém, no seu inconsciente, esses registros arquetípicos e remotos de suas origens. Quanto aos poetas que lidam muito com essa questão da memória mítica do mundo, começo por dois, por suas afinidades e disparidades: Dora Ferreira da Silva e Gerardo Mello Mourão. Uma das introdutoras de C. G. Jung, Rainer Maria Rilke, Ângelus Silesius, Saint-John Perse e Friedrich Hölderlin em língua portuguesa e estudiosa de história das religiões, a obra de Dora pode ser vista como uma contínua aproximação do mistério original. Poesia como gnose e desvelamento, como lemos sobretudo em Uma via de ver as coisas, de 1973, mas também como perquirição da memória e resgate do passado, como em Retratos da origem, de 1988. Nela a dimensão pessoal e existencial se conjugam com uma experiência da memória coletiva do mundo, por meio do devir mítico que sua poesia agencia e atualiza no presente. Isso é bastante patente em seu mais recente livro, Cartografias do imaginário, de 2003. Nele, a poeta consegue uma articulação entre episódios e nomes da infância e o esteio mítico que tais episódios e nomes sugerem, colhido no Egito, na Etrúria e, sobretudo, na Grécia. A inspiração da poesia de Dora, aliás, é quase toda grega. Não no sentido clássico, de harmonia e proporção, mas sim extraída daquela Grécia profunda, de Dionísio e dos cultos de mistérios, de Orfeu e dos rituais iniciáticos, nos quais tantos poetas modernos de primeira plana beberam, a começar pelo próprio Rilke, poeta de devoção de Dora. Trata-se de uma poesia de celebração telúrica dos instintos e da terra, de mergulho naquele grande Deus-Rio do Sangue de que nos fala Rilke, e, é claro, de sua ulterior redenção.
Gerardo, como frisou o grande e saudoso crítico José Geraldo Nogueira Moutinho, em artigo antológico, intitulado Poeta grego do Ceará, é um poeta antigo, no sentido forte do termo, um aedo, poder-se-ia dizer. Recicla cantos populares e a tradição rítmica da poesia oral, aliados ao conhecimento amplo da grande poesia moderna e ao domínio de diversas línguas, inclusive o grego e o latim. Esse percurso pode ser notado com muita nitidez em sua trilogia: O país dos Mourões, Peripécias de Gerardo e Rastro de Apolo, os dois primeiros de 1972 e o último, de 1977, posteriormente reunidos no livro Os peãs. Esse curioso nome, peã, no masculino, parece dar a chave para a poesia de Gerardo. Trata-se de um tipo de canto ritual dos antigos gregos. Louvação da terra, dos animais, dos sentidos, dos prazeres mundanos e ao mesmo tempo meio de elegê-los e inscrevê-los num domínio sobrenatural, de pura participação nas essências, cujo acesso nos é possibilitado pelo sopro da poesia pela flauta do poema, a obra de Gerardo é um dos maiores elogios que a poesia brasileira já fez à liberdade. Não à liberdade como falta de comprometimento, mas sim como a liberdade radical, profunda e conquistada de que nos falam todas as filosofias da existência, desde Kierkegaard, passando por Heidegger até Sartre. Como homem, teve e tem vida turbulenta, repleta de acidentes políticos e viagens por vários lugares do mundo. Sua poesia é uma espécie de canto multifacetado onde tenta reviver suas origens familiares e, ao mesmo tempo, recompor as peças da história e a triste fragmentação do mundo onde lhe foi dado viver. Assim, tende sempre ao épico, mesmo quando o registro é lírico e a música é de câmara. Gerardo também publicou duas obras magistrais na área da ficção: Piero della Francesca ou As vizinhas chilenas e Valete de espadas. É autor de inúmeros ensaios sobre poesia, literatura, política, economia, entre outros assuntos, onde podemos rastrear seu percurso intelectual. Poeta de repercussão e vivência internacionais, chegou a ser correspondente de jornais brasileiros em Pequim. Dele disse Ezra Pound que foi um dos poucos poetas que conseguiram escrever a poesia épica da América.
Em sentido semelhante, poetas com espírito cosmopolita, que parecem ter superado a dicotomia proposta pelo Modernismo entre uma literatura colonizada e outra, colonizadora, têm dado a pauta das discussões. Podemos identificar o espírito de superação dessa aporia inicial em nomes como Bruno Tolentino e Affonso Romano de Sant'Anna, embora o primeiro se vincule mais às questões transcendentais e o segundo tente fazer uma síntese do embate político e cultural de nosso tempo. A obra de Tolentino entra de vento em popa na supracitada vertente metafísica. Não porque adere à paisagem mítica que os poetas que mencionei acima mobilizam de maneira exemplar em seus versos. Mas sim porque pertence a uma linhagem de poesia meditativa, de forte extração religiosa e sacramental. A maioria de sua obra segue formas fixas e se cumpre em torções clássicas do verso. Porém, sua modernidade é de outra ordem. Pode-se dizer que ela se cumpre numa espécie de teologia negativa que o poeta encarna, já desde a publicação de Anulação, seu livro de estréia, de 1963, tratando o mundo decadente em que vivemos sempre como fruto da marmorização do ser levada a cabo pelo império da Idéia. Esse percurso, poético e intelectual, por meio do qual o autor identifica, na emergência dos sistemas e das especulações abstratas, o início da crise do pensamento ocidental, passa por obras como Os deuses de hoje, de 1995, talvez um de seus melhores livros, e vem desaguar em O mundo como idéia, de 2002, livro-ensaio de poemas e reflexão crítica, onde o autor demarca o itinerário paulatino de substituição da luz inteligível pela luz conceitual, valendo-se de toda a história das artes plásticas no Ocidente como emblema, desde Paolo Uccello. Para Tolentino, a modernidade, em termos amplos e seculares, se funda sobre o vazio calamitoso da ausência do divino. Já a modernidade de sua poesia, por seu turno, reside justamente no avesso dessa constatação e na tentativa de redenção e repúdio a este absurdo que nos constitui. Sua obra aponta para esse problema e tenta fazer a sua contrafação, como crítica e como peroração, por meio da poesia, de um sagrado veraz e possível, ainda nos dias de hoje. Tolentino também tem obras em inglês, About the hunt, e francês, Le vrai le vain, que receberam críticas positivas de nomes como Jean Starobinski e Yves Bonnefoy.


VERTENTE PARTICIPATIVA



Poeta que procura efetuar sínteses e que tenta agregar à poesia um repertório não necessariamente nacional, embora preocupado com os grandes vôos e a grande abrangência que lhe podemos facultar, em termos históricos e culturais, Affonso Romano de Sant'Anna nos oferece esse movimento em duas de suas grandes obras: o A grande fala do índio guarani e Catedral de colônia. Se a primeira tece uma longa antífona pensando a situação excêntrica do protagonista de um país igualmente excêntrico em termos políticos e econômicos, a segunda pode ser vista como a incorporação que um poeta culto faz da história européia, e consiste em um longo poema, com menções eruditas sobre a edificação desse templo, numa espécie de mosaico poético. Mal comparando, pode ser pensada como um correlato do longo poema Auto-retrato num espelho convexo, de John Ashbery, publicado em 1975. Sant'Anna também se destaca como pesquisador e como crítico de arte, sobretudo pela crítica contumaz que vem fazendo à arte conceitual, o que lhe valeu o título de inimigo número um de curadores, marchands e galeristas, alfinetados por suas palavras. De sua autoria, Que fazer de Ezra Pound? e Desconstruir Duchamp talvez sejam os seus livros mais iconoclastas, aqueles onde pretende implodir por dentro dois arautos da modernidade. Mas a sua investigação, ao contrário do que pode parecer, nunca cede à pura polêmica.

Em um âmbito de interrogações diverso, mas convergente, se encontra um dos grandes nomes da poesia brasileira atual: Ferreira Gullar. O poeta começou sua atividade ao vento das mais radicais correntes da vanguarda. Para se ter idéia, ele e o artista plástico Helio Oiticica, nos idos anos 60, planejaram uma exposição de arte e poemas que, depois de terminada, seria detonada por explosivos. Porém, foi transformando paulatinamente sua obra, em termos estéticos e ideológicos, de modo que é difícil abrangê-la em sua complexidade. Já em seu primeiro livro, Luta corporal, de 1954, Gullar estabelece os parâmetros de sua poética: nada de abstrações, nada de devaneios, nada de poesia pura. O poeta maranhense trava um corpo-a-corpo com a linguagem, em que a corrosão do tempo, a morte, a miséria e a exploração dos homens uns pelos outros, temas captados em fortes redes de imagens, são índices do nosso destino humano dentro da história, e este, em suma, a preocupação última da arte. Bem mais tarde, em 1975, surgirá outro grande livro, Dentro da noite veloz, que parece sintetizar, já no título, suas inquietações políticas e existenciais. Gullar tem um esmerado trabalho como crítico de artes plásticas e ensaísta, onde explicita suas crenças. Com a publicação de Vanguarda e subdesenvolvimento, de 1969, o poeta encerra de vez sua adesão às vanguardas e passa a ser um dos críticos mais mordazes do processo de alienação e reificação da linguagem que as próprias vanguardas engendraram, ao fazer a crítica do capitalismo e da mais-valia estética via ruptura arbitrária com as convenções igualmente arbitrárias dos signos. Hoje Gullar é considerado um dos grandes poetas brasileiros, e tem trânsito freqüente na imprensa, onde expõe com precisão tudo o que considera falacioso no mito da teleologia e da superação das formas artísticas, propugnado pelo espírito das vanguardas, bem como põe o dedo na ferida política e ideológica que este mito esconde, por trás de sua aparente benevolência e filantropia. É uma mea culpa, é certo. Mas das mais elegantes que alguém poderia promover.
Em artigo memorável, publicado em maio de 1984, no Jornal da Tarde, o sociólogo Gilberto Freyre, gênio que, também ele, aquilata a língua portuguesa com sua obra, aborda a obra de outro ótimo poeta, em consonância com as indagações e embates do processo civilizatório da América Latina, definindo-a como uma poesia sócio-filosófica. A definição é das mais pertinentes, quando se tem em mente que o poeta em questão é Mário Chamie. Dono de um amplo arcabouço teórico nas áreas de semiótica e lingüística, Chamie lança, em 1962, um dos seus livros capitais: Lavra lavra. Como adendo, o texto crítico que funda a Instauração Praxis e que define o que vem a ser o Poema-Praxis. Instauração e não movimento, porque Chamie quer recuperar o feixe de possibilidades poéticas aberto pelo Modernismo brasileiro, além de dialogar com a arte moderna, em sentido mais amplo, e assim tenta quebrar a própria idéia de um movimento coeso, circunscrito a regras de domesticação e a um espírito de rebanho. A obra é fruto de pesquisas lingüísticas do poeta no âmbito rural do Brasil, mas usa esse substrato de maneira inventiva, de modo que consegue dar uma idéia da exploração social e da situação campesina, valendo-se de uma linguagem flexível e de grande complexidade sintática e semântica. Depois, em Indústria, de 1967, Chamie vai seguir o mesmo itinerário de pesquisa e intervenção. Porém, aqui é a estética serial das grandes cidades e a fala entrecortada dos seus habitantes que serão o húmus germinativo de sua floração poética. Pode-se dizer que Chamie pensa a arte sempre em sintonia com a realidade histórica imediata, tentando operar sínteses entre a experiência de viver em uma sociedade tecnológica, porém subdesenvolvida, e a criação poética. Mas nunca o faz em conivência com o status quo, mas sim em tom crítico, sem nunca abrir mão da ourivesaria do verso. O poeta tem também um importante trabalho como teórico da literatura e como ensaísta. Personalidade de uma honestidade intelectual ímpar no nosso meio, Chamie também é um dos nomes mais polêmicos e combativos das últimas décadas, o que lhe valeu adversários aos montes, mas que nunca lhe fizeram demover o pé de suas convicções e, na maioria das vezes, não se equiparam a ele em talento.





VERTENTE DA IMAGEM




Um aspecto da literatura brasileira a ser estudado ainda é o espírito refratário de seus críticos e mesmo de seus escritores a algumas correntes da arte moderna, em especial ao Surrealismo e ao Expressionismo. Mesmo tendo-se em conta que dois dos maiores poetas brasileiros do século 20, Murilo Mendes e Jorge de Lima, são de forte extração surrealista, é estranho que no plano valorativo mesmo eles ainda esperem ser devidamente lidos e apreciados. Pode-se aventar que o forte influxo futurista no Modernismo brasileiro e sua subseqüente radicalização, com o movimento da Poesia Concreta, lançado em 1956, tenham sido os responsáveis por manter alijada dos centros de discussão uma estética tão rica e que rendeu tantos bons poetas. Mais que isso: que pode nos possibilitar até uma outra leitura, não só da arte, mas do próprio real, atenuando o hiato que separa a vida da criação, a arte de sua inserção no mundo.
Podemos começar por três deles, embora haja divergências de base entre eles próprios sobre suas respectivas obras: Claudio Willer, Roberto Piva e Sergio Lima. A atividade de Willer na área da literatura é de uma generosidade pouco freqüente nesses meios. Tradutor e introdutor de autores fundamentais, e até então desconhecidos no Brasil, como Lautréamont, Allen Ginsberg, Antonin Artaud, entre outros, difusor de literatura, crítico, ensaísta, prosador, palestrante e durante bom tempo presidente da União Brasileira dos Escritores, a obra de Willer, mais do que algo da ordem do puro artefato literário, parece apontar para uma espécie de vivência integral da literatura em todas as suas vertentes possíveis. Esse aspecto lhe foi evidentemente instilado pelos surrealistas, com alguns dos quais chegou a travar contato direto em Paris. A eles sua obra explicitamente se liga, e ao seu imperativo, que tentava conjugar a transformação da vida, exigida por Rimbaud, ao mudar o mundo, vindicado por Marx. É nessa conexão indissolúvel, da arte não como uma representação do real, mas como uma de suas zonas de sombra, da arte não como algo a ser conquistado, mas sim como uma potência a ser vivida, que se desenvolve a obra de Willer. Em termos poéticos, desde seu primeiro livro, Anotações para um apocalipse, de 1964, Willer parece tentar equacionar toda a força da sua poesia em feixes luminosos de imagens. E mesmo a revolta inexpressa ou o forte teor erótico que subjaz a seus versos, muitas vezes em sintonia com o erotismo de Paul Éluard, por exemplo, encontram resolução no silêncio aterrador da imagem e sua síntese de elementos distantes, operada em alta voltagem metafórica. Trata-se de uma poesia de rebelião romântica mais do que de revolta, na famosa distinção de Octavio Paz, um dos seus autores prediletos. Poesia da vida e vivência cotidiana poética: eis os termos da equação que ele nos propõe. Também é autor de Volta, uma autobiografia.


Em um sentido muito próximo ao itinerário de Willer se desenvolve a obra de Roberto Piva. A diferença é que em sua poesia talvez Piva tenha realizado algo que, não fossem nomes como os norte-americanos Frank O'Hara e Philip Lamantia, poder-se-ia dizer sui generis, até em termos mundiais: a aliança entre Surrealismo e Beat Generation. Deve-se reconhecer que a obra de Piva é bastante desigual. Mas isso talvez se deva a uma das suas maiores virtudes: creio que nenhum poeta, no Brasil, foi movido por um instinto luciferino, anárquico e impetuoso tão intenso quanto o que o moveu. Na chave de intersecção de poesia e vida e a conseqüente reversibilidade de uma na outra, Piva, que certa vez definiu a poesia como uma forma de subversão do corpo, cumpre um papel central. Demolidor de valores burgueses, pária social, anarquista vociferando contra todas as autoridades, todos centros de poder e todas as instituições, ele parece querer restituir a dimensão transviada do poeta como sacerdote e vidente, em uma sociedade de pura transitividade e mercantilização, em meio a uma realidade destroçada. Mais: da poesia como ritual xamânico, em confronto direto com o absurdo e a falta de sentido do mundo. Sua obra maior é Paranóia, publicada em 1963, com fotos magníficas do artista plástico Wesley Duke Lee. Trata-se de um longo poema onde o poeta, como um flaneaur, viaja por São Paulo no limiar da alucinação e dos registros imediatos da metrópole que ele colhe como a estilhaços e oferece à nossa percepção. Leitor voraz de Dante e de Mircea Eliade, Piva só se dedica à poesia.
A trajetória de Sergio Lima é mais excêntrica. Tendo-se ligado ao grupo surrealista francês, com André Breton, Lima segue os ditames da poesia de imagem surrealista de uma maneira bem mais ortodoxa, dificilmente transigindo em pontos que ele considera intocáveis do Surrealismo, sejam eles artísticos, éticos ou ideológicos. O que mais chama a atenção em sua poesia é a própria concepção do poema como texto e, mais além, como intertexto. Citações e considerações vêm entremeadas ao poema em uma fluidez pouco usual, de modo que perdemos às vezes a linha do desenvolvimento lógico dos versos e suas demarcações de fronteiras. Outra tônica: o erotismo. Em doses fortes, ele funciona como uma espécie de ímã da poética de Sergio Lima, catalisando em torno de si versos, fragmentos, imagens, fotografias, olhares, como podemos ler em A alta licenciosidade, livro publicado em 1985, que reúne parte de sua produção poética. Lima tem um importante trabalho como artista plástico e como professor de história da arte e de collage, e está preparando o segundo dos quatro tomos de Aventura surrealista, obra ambiciosa, onde pretende fazer uma espécie de percurso amplo e exaustivo dessa estética.
Nutrindo-se desse mesmo esteio poético que alia imagem e verbo, temos dois nomes bastante singulares: Floriano Martins e Contador Borges. A atividade de Floriano no campo da literatura é das mais abrangentes. Provavelmente um dos maiores conhecedores brasileiros de literatura hispano-americana, Floriano é responsável pelas melhores dentre as escassas pontes que já foram criadas entre os países vizinhos da América Hispânica e o Brasil, tão próximos, cultural e lingüisticamente, e, no entanto, tão distantes. Sua atividade se espraia em uma série de ramos: crítico, tradutor, ensaísta, compositor, biógrafo do músico Alberto Nepomuceno, poeta, ficcionista e editor da revista virtual de cultura Agulha, junto com Claudio Willer. De sua obra poética, talvez o livro Alma em chamas, de 1998, reunião de parte de seu trabalho anterior, seja o mais paradigmático. Unindo prosa poética e poesia, labirinto de imagens e teatro com nomes fictícios, muitos dos quais inspirados em personagens reais do convívio do autor, esta obra vai desde os mergulhos mais verticais nas zonas do inconsciente à pintura tomada ipisis litteris como motivo poético central, como é o caso da sessão de abertura: Aula de pintura. Amante das vertigens e da imagem como pontos-de-fuga existenciais, dos improvisos luminosos à maneira de Keith Jarrett, leitor dos surrealistas e de toda uma tradição heterodoxa da poesia hispano-americana, Floriano parece unir todo esse material de experiência e de leituras feito em sua poesia, sendo obra de verticalidade e de entrega, mais do que de falsas e inócuas contensões hipoteticamente rigorosas. Desenvolve um trabalho na área de collage, com os quais geralmente ilustra seus livros. É autor também do livro de poemas Estudos de pele.

E por falar em pele: teias, estampas, máscaras, folhas de rosto, poros, nudez, véu e pele. A poesia de Contador Borges parece feita desses tecidos de imagens que ele mimetiza a seu bel-prazer e lhes dá volume, dimensão, consistência, textura, cor, brilho e intensidade, sugerindo que são reais, quando na verdade são algo entre o etéreo e mais profundo rito saído dos ventres da terra. Tal oscilação é difícil de ser apreendida e aprendida: lida com os limites da representação e com o ir e vir do mais desencarnado espírito ao mais telúrico dos prazeres. Talvez seja nessa chave que possamos ler os dois livros principais de Contador: Angelolatria, de 1997, mas que reúne sua produção anterior, e O reino da pele, de 2003. Essa construção literária tem uma fonte. Aliás, algumas. E se lembrarmos que Contador, além de poeta, é tradutor de autores como Gerard de Nerval, René Char, Marquês de Sade e estudioso da obra de George Bataille, talvez tenhamos aqui algumas pistas de suas leituras e de seu universo imaginário. A conexão que Contador estabelece com os anjos não é, porém, semelhante à de Rilke. Há ironia e também nostalgia de uma espécie de pátria alienada, ideal e desmaterializada, em seus versos. Da mesma forma, só temos acesso ao sensível. Ele é que constrói a trajetória de nosso ser e nos lapida em nosso íntimo. Para falar com Paul Valéry: não há nada mais profundo que a pele. Contador sabe disso e é por isso que ele faz dela o seu reino e seu império, pois querer atravessar o seu mistério e transcender os seus limites é correr o risco de nos perdermos, em plena queda, no vazio da mais completa falta de sentido.




NOVOS RUMOS



Creio que o principal ponto de contato entre os escritores que estão começando a produzir hoje seja a recusa sumária de qualquer movimento autocentrado ou centralizador e uma tentativa de produzir singularidades poéticas, para usar uma expressão de Gilles Deleuze, independentemente de sua definição ulterior, ou seja, sem cair em velhos truques corporativistas. Há uma série de autores cuja obra se encontra, ou em desenvolvimento, como é o caso dos mais jovens, ou que começaram sua produção recentemente, mas já obtêm ressonância e repercussão, entre leitores e críticos, como é o caso do grande escritor Evandro Affonso Ferreira, um prosador à Gustave Flaubert, com seu impressionante trabalho de pesquisa léxica e de desestruturação do enredo. Se fosse para falar em autores para um futuro próximo, apostaria todas as minhas fichas nos seguintes nomes: Dirceu Villa, Weydson Barros Leal, Viviane de Santana Paulo, Ricardo Lisias, Fabrício Carpinejar, Wanderson Lima, André Luiz Pinto, Edmar Monteiro Filho, Flavia Rocha, Juliano Garcia Pessanha, Sergio Cohn, entre outros, que devem estar em fase de emersão no presente momento. Volto a reiterar: este texto é apenas uma das abordagens possíveis da literatura que se produz hoje no Brasil, cujo teor é dos mais diversificados, plurais e inapreensíveis. Abordagem circunscrita, diga-se de passagem, como todas. Para finalizar, confesso que faltou, nele, um nome gigante, para mim uma das maiores escritoras brasileiras do século 20: Hilda Hilst. Como ela faleceu recentemente, preferi deixá-la fora deste ensaio, para presenteá-la com o silêncio da não-palavra. Que ele seja, para ela, a minha humilde homenagem.




RODRIGO PETRONIO é escritor. Autor de História natural (poesia) e Transversal do tempo (ensaios).
















14 de julho de 2009

Pedra adormecendo


Vicente Franz Cecim



não era o que nasce

dos que nascem

para ocultar Penumbra na luz Era

um centro escuro de estrelas, e a Tua: A Ascendente: oOmoplata de virtudes





E a Cordilheira, quando O Mais se manifestou por entre os lábios


Quanta Presença

dAquele que foi eleito
para residir

na Fenda




LIVRO DE ANDARA TRANSCRIADOS: Terra da sombra e do não

























Terra da sombra e do não, contendo os livros visíveis 4, 5, 6 e 7 de Viagem a Andara oO livro invisível de Vicente Franz Cecim - em versões transcriadas pelo autor e lançadas em 2004 - está disponível no site da Editora Cejup.
















A primeira edição dos quatro livros que integram Terra da sombra e do não foi feita pela Iluminuras em volume reunindo os sete primeiros livros visíveis de Andara, com o título Viagem a Andara, que recebeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1988.



LIVRO DE ANDARA TRANSCRIADOS: A asa e a serpente
























A asa e a serpente, contendo os livros visíveis 1, 2 e 3 de Viagem a Andara oO livro invisível de Vicente Franz Cecim - em versões transcriadas pelo autor e lançadas em 2004 - está disponível no site da Editora Cejup.

















A primeira edição dos três livros que integram A asa e a serpente foi feita pela Iluminuras em volume reunindo os sete primeiros livros visíveis de Andara, com o título Viagem a Andara, que recebeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA - Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1988.

LIVRO DE ANDARA NA VER O VERSO: K O escuro da semente

























K O escuro da semente, o livro visível 14 de Viagem a Andara oO livro invisível de Vicente Franz Cecim, está disponível em edição portuguesa nos sites da Ver o Verso e Wook.















LIVRO DE ANDARA NA ILUMINURAS: Silencioso como o Paraíso

























Silencioso como o Paraíso, reunindo os livros visíveis 8, 9, 10 e 11 de Viagem a Andara oO livro invisível de Vicente Franz Cecim, está disponível no site da Iluminuras.







http://www.iluminuras.com.br/v1/verdetalheslivros.asp?cod=327

LIVRO DE ANDARA NA BERTRAND: Ó Serdespanto


























A edição brasileira de Ó Serdespanto, contendo os livros visíveis 12 e 13 de Viagem a Andara oO livro invisível de Vicente Franz Cecim, está disponível no site da Bertrand Brasil.























A edição portuguesa de Ó Serdespanto saiu pela Íman em 2001.





13 de julho de 2009

LIVRO DE ANDARA NA TESSITURA: oÓ: Desnutrir a pedra
























oÓ: Desnutrir a pedra,
o livro visível 15 de Viagem a Andara oO livro invisível
de Vicente Franz Cecim,
está disponível no site da Tessitura.













http://www.tessituraeditora.com.br/

11 de julho de 2009

Quem















Van Gogh: O Semeador





sem mão esquerda nascendo de uma Idéia

de Tocar


Enquanto cambaleia no Crepúsculo: um k
que ascende sem tombar KKK


Mas permanecendo, no Silêncio,
em seus pés


que não dão um Passo
que não negam o sonhO
e sem

esperar nascer de cinzas um dia iMortal
de parte alguma

E sem olhos sem Cílio sem
palavras,


Se faz,

na Noite,


a Pergunta


e sem mão esquerda nascendo de uma Idéia

de Tocar auroras



Vicente Franz Cecim





O que é Andara?





Maria João Cantinho – O que é Andara, que universo é esse?

Vicente Franz Cecim – Andara às vezes não é nada//É só uma estrada/onde uma sombra longa, de homens, de pó, vai passando//Um ventinho, vindo não se saberá nunca de onde, vem e desfaz o pó,/desfaz os homens//desfaz a sombra//Andara às vezes não é nada./Não é nada. - Esse é um dos possíveis dizeres sobre o que é, ou não é, Andara: está lá, logo na abertura do texto Música do sangue das estrelas contido no livro visível de Andara Ó Serdespanto, ainda inédito aqui no Brasil, que a Íman lançou, em 2001, aí em Portugal.* Há quem suspeite que Andara vem da palavra andar, e como há uma relação de rimas, ainda que inaudíveis, de laços de parentesco entre as duas palavras do título do não-livro Viagem a Andara, esses pensam que acharam o caminho. Pode ser o caminho, um deles, para Andara, mas certamente não é o Caminho, o Único: esse, nem eu sei, porque Andara apenas se escreve através de mim, em Transe Verbal, e muitos silêncios, cada vez mais longos vales de silêncios a atravessar. Mas para chegar aonde? Não sei. Eu por mim suspeito que Andara é só a Viagem: não parte de Lugar Algum, e mesmo talvez, em seu Segredo, querendo, não quer chegar – porque parece impossível, humanamente, assim só homens como somos, chegarmos – a Algum Lugar. Já estamos no Lugar do Humano. Que é um lugarzinho imenso. Posso continuar tentando dizer o que é Andara, mas será sempre inútil. Quer ver? Repito o que já disse em outra entrevista à revista brasileira Azougue: - Andara sou eu, me vivendo em sonhos de Escritura de mim mesmo. Ou: - Em relação à literatura, Andara não é mais Literatura, é Escritura e desvio onto-introspectivo, em relação à Literatura. Continuo tentando? Não sei bem para que, mas tentemos: - Andara é Coisa que viaja por dentro e no sentido inverso: quer retornar dos dedos dos pés ao calcanhar de Aquiles do homem, ali onde ele é mais sensível à Hipótese Onírica e Lúdica e Naturalmente Sagrada da vida. Andara quer a Origem, o Antes do ponto em que tudo começou a se perder do Todo, o ponto oculto de nós, homens, que só se consente a nós em Relances, Vislumbres. Se ela quer alguma coisa – é Isso. Eles também me perguntaram, estou relendo a entrevista agora: - E esses vislumbres em Andara permitem ver o que? - O Onde e o Quando o natural e o sobrenatural ainda não haviam sido deformados como oposições que se excluem mutuamente, foi o que respondi. E essa é uma resposta que mantenho: - Andara se opõe à Matriz dos dualismos. De todos os dualismos. Ela é Demanda do Um através do Vários. - Mas vê, Maria, o quanto eu também sou vítima do fascínio de Des-cifrar Andara. Falei tanto, não disse quase nada. E Cifrei mais ainda Andara. Nossa Tribo Peregrina por todos os recantos do Real e dos Sonhos

Fragmento da Entrevista Nossa Tribo Peregrina

* A edição brasileira de Ó Serdespanto saiu em 2006, pela Bertrand Brasil.



10 de julho de 2009

Flagrados em Delito Contra a Noite no Coração da Luz

M A N I F E S T O S
C U R A U

I & II












O pássaro Curau vôou
pela primeira vez nos céus de Andara
em 1981, em Os jardins e a noite, terceiro livro visível de
Viagem a Andara oO livro invisível.









V I C E N T E F R A N Z C E C I M

















1979/2009: 30 ANOS DE VIAGEM A ANDARA

1975/2009: 34 ANOS DE KINEMANDARA

1983/2009: 26 ANOS DE MANIFESTO CURAU











MANIFESTOS CURAU/PARTE I: PALAVRAS DE ABERTURA










Dom Fugaz


Enquanto Flagrados em delito contra a Noite/Manifesto Curau, o Manifesto I, de 1983, foi uma Palavra para Todos, o que falou após ele vinte anos depois: No Coração da Luz/Segundo Manifesto Curau, ou não é uma Voz que se dirige, com menos ingenuidade, objetivamente cético-estóico-Sêneca apenas às Gerações Futuras. Nesse sentido, houve, em relação ao que o anterior propunha, uma redução de expectativas ou um des-iludir-se como libertação das falsas esperanças: - Como creio que as Mutações das Consciências se darão lenta e impura mente mescladas aos vícios mentais acumulados nas gerações passadas, tendi a inclinar minha esperança para um Dom da Vida: a Fugacidade dos Homens e das Coisas. E louvar que nada, em baixo, se mantenha o Mesmo - sim, Heráclito - embora tudo, no alto, permaneça o Uno - sim, Parmênides. Pois parece um Bem e uma Graça que os homens, enquanto Entes da Vida Visível, a manifesta, sejam Efêmeros e as coisas mutáveis, e que os frutos antigos desmoronem e se desfaçam, mas semeando Sementes. Eis, estão : - Se essas Sementes vierem contaminadas por Aquilo, oculto, que levou o Fruto à decadência, estão estaremos perdidos. Sonho esta Utopia, no foradentro da VidAndara: - Sonho que, Se, florescerem duas gerações inteiramente inter-rompidas com o passado, nascidas - que Milagre, ó ser de espanto - sem antecedentes - isso limparia, lavando e queimando, a Vida humana de seus Vícios públicos e privados. E assim entendo que metáforas como Dilúvio & Apocalipse são, especificamente, essa Fugacidade que possa vir nos libertar das cadeias. No duplo sentido, de elos e prisões.








VFC.
Belém, Amazônia, Brasil,
Junho/2009.








MANIFESTOS CURAU/PARTE II: FLAGRADOS EM DELITO











Flagrados em Delito Contra a Noite/Manifesto Curau

Vicente Franz Cecim








O menino ouvia.

- O medo só veio para aqueles que tinham as suas velhas razões para ter medo, e esses passaram a ter medo então do Curau. Eles têm medo de tudo, dizia Jacinto. O menino ouvia.
Quando a ave veio, aquele medo andava pelas ruas com passos que nunca levarão a uma terra sagrada, menino, dizia Jacinto.
E o menino ouvia.

Os jardins e a noite, 1981/* Foi neste terceiro livro visível que o pássaro Curau surgiu nos céus de Andara pela primeira vez





Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso.
Este é um esforço que precisa voltar bem atrás, e que deverá se espalhar, interrogativamente, em várias direções, para obter êxito.

Historicamente, a História vista com um outro olho, não essa de a prioris infalíveis, mas uma de navegações frequentemente sem leme e em rumo incer­to,
historicamente, a falência do Ocidente culto instituído, aristotélico e cartesiano, pragmático enfim, tem sido uma crença estúpida, contagiosa e exportada para os quatro cantos magros do mundo, num dos quais nos incluímos, embora devamos estar solidaria­mente em todos eles: uma crença que afirma que só os dias despertos existem, sendo todo o resto fantasma, isto é: a parte dos sonhos.
Aí se instala o reduto central da opressão, desse Ocidente auto-suficiente e, em decorrência, rancoroso, reduto que as nossas confrontações libertárias com o colonialismo devem atacar cada vez mais.
As fábulas do Ocidente culto são, assim, quando existem, frequentemente documentos de um terror.
O terror de permitir que os sonhos humanos penetrem no real para fecundá-lo de desejos nos limites do impossível, seduzindo toda sensatez domada, estabelecida, libertando o real da racionalidade infame. Essa senhora respeitável e, no entanto, maníaca.

Mas nós, aqui, entre peixes, sonhos e homens, nesta Amazônia em transe permanente, sabemos, ou deveríamos saber, que é preciso tocar o coração de Aquiles do real, ali onde ele é sensível e impaciente espera de um acontecimento total que o transfigure.
Onde se oculta, e como se dissimula, o medo ocidental?
Sua recusa sistemática da dimensão imaginária humana?
Afinal, e claramente, um mecanismo de civilização em processo de autodefesa tão suicida como crimi­noso, como qualquer outro verificável em individuali­dades retorcidas pelo esgotamento de uma existência sem revitalizações permanentes?
Marx dizia que, na História, os acontecimentos se repetem como farsas. O Ocidente culto é a repetição de uma repetição, a farsa de uma farsa.
Esse medo, vulnerável a um olhar sem véus, revela-se: trata-se, quando observado sem reservas nem admiração inocente, de uma engrenagem que, atualmente, e cada vez mais, de repetição em repetição histórica, gira ao contrário: se antes permitiu ilusões reconfortantes, hoje, ela despedaça o próprio ociden­tal – e faz dele sua vítima mais imediata, não esqueça­mos isso – carente como ser dado ao mundo social – apesar de uma civilização de bem-estar material – e como projeto de ser – nunca totalmente alienável – na destinação secreta que o põe, no ritual das ontologias indiferentes às deformações da História, e apesar das consolações religiosas do Ocidente, desabrigado num cemitério de ossadas morais, estéticas, políticas – es­tas, também um fêmur roído até a fronteira das ceri­mônias sociais já sem sentido.
O medo do Ocidente culto é o medo do Ocidente às revoluções. De qualquer espécie. Poéticas ou políticas, ou à aliança dessas duas formas de luta.
O medo do Ocidente às fábulas do imaginário rebelde é a mais evidente declaração de desprezo desse Ocidente pela realidade.
Porque, na verdade, esse Ocidente nega o real, sob o álibi de recusar o sonho em nome de uma reali­dade que, de fato, é vazia e inexistente, porque mero artifício engenhoso engendrador de uma forma de do­minação que se quer estável e permanente, certeza e reafirmação da manutenção perpétua de um poder.
O medo ocidental culto é o medo dos imperialismos da Razão, e sua base econômica e totemicamente moral, às possibilidades históricas e estéticas da Áfri­ca, da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina.
Também não temos o direito de esquecer que é com esse medo que as autoridades desse Ocidente cul­to submetem o indivíduo ocidental anônimo: latente aliado do Terceiro Mundo para uma insurreição em escala planetária.
Esse medo é o manifesto temor, de impulsões assassinas – os massacres do imperialismo estão em toda parte, inclusive na expansão de um novo imperialismo europeu de esquerda – de um organismo arcaico ante a emergência de novas vitalidades sobre o plane­ta.

O equívoco das lutas antiimperialistas circunscri­tas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte-americano, inclui estratégias mais vastas e in­visíveis, que utilizam a cultura - a Cultura, exprime melhor - e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das cultu­ras do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertado­ra.
Assim é que esse Ocidente, tendo tudo a perder, nem vivo no real, nem mais vivo ainda na incorpora­ção de um real total pela incorporação do além-fronteiras do onírico humano,
quer, insiste em se propor como modelo alienador, das culturas oprimidas.
Freud continua sendo para o Ocidente culto uma ferida aberta no seu inconsciente, perigosa, e que o Ocidente precisa cicatrizar, esquecer, e a conversão de suas descobertas em estratégias terapêuticas é a mais explícita constatação da manifestação do medo ocidental diante do imaginário.
Será compreendendo que, do outro lado do Atlân­tico e mais acima dos Trópicos, se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.

O real está em toda parte, sim,
mas sob o domínio do medo ele se transforma em fantasia e fuga ao real.
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela.
E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.
E é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso rom­per tabus, negar-se a velhos cultos.
Quantos de nós se dispõem a tanto?
Há tribos na Amazônia que afirmam:
– A vida é uma ilusão, só os sonhos têm realidade.
Não.
Não se trata de mais uma alienação, mera crença.
Antes, é preciso ver nisso a presença de uma consciência que já viu.
E viu o quê?
É simples: ao tomar o real expresso como o Real, o homem se amesquinha e trai seu projeto de ser ine­rente: ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa volta é, na Amazônia, social­mente, a transplantação da realidade forjada pela cul­tura do dominador, herança a que nos forçam.
Alguém já disse: - Do fundo de uma prisão, um homem pode fechar os olhos e destruir o mundo.
É disso, enfim, que se trata. Desse poder. E nós o temos, mas ele dorme entorpecido o nosso sonho de região sem voz, sem identidade, sem alma – porque fomos desalmados pelo invasor.
Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus er­ros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos do­minadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrin­do mão.
A Amazônia é uma irrealidade, então? Uma utopia? Um fantasma geográfico habitado por fantasmas humanos? É?
Também. Da perspectiva da nossa opressão, isto é trágico; mas da perspectiva da nossa realidade, aí está o começo da nossa liberdade. E não apenas em re­lação ao colonizador, mas também em relação à pró­pria vida, para nós, potencialmente, um dado lúdico.
E no entanto, aqui se morre, se nasce em ondas, há a fome em estado crônico, homens doentes nos olham nos olhos às vezes com paixão, outras vezes com ódio. Tudo é igual à vida como ela é, vista por fo­ra.
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.
Esta: para além do real que me é dado pelo mundo,
e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim,
resta-me o recurso de um jogo.
E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:
– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
Foi isso o que o colonizador esqueceu, e por isso ele fez de sua história uma História lenta, mas fatalmente, contra a sua própria vida.
Tudo isso vemos, e não vemos, não temos visto, como um espetáculo exposto à nossa consciência: o drama de um naufrágio. O naufrágio do modelo da civilização ocidental.
Repetiremos sua encenação?

Nesta geografia, não só os rios, mas também as idéias, os desejos, os projetos de vir a ser, tramam labirintos.
Nada a conter. Não nos peçam a coerência e o linear.
A região é barroca. Barroca, aberta e canibal: um dia caberá fazer esta, a última afirmação, com mais propriedade.
Se, como no zen – citação de canibalismo cultu­ral, desde já – me dizem que o corvo da História é negro, me cabe amazonicamente libertar-me na proposição de um outro corvo, mesmo que isso seja aparentemente uma loucura,
o absurdo,
e dizer: - O corvo não é negro.
Aí começam as chances do meu corvo não ser ne­gro. O corvo da História, o meu corvo de ser.
Minha revolução se faz de inversões que me li­bertam do dado, do imposto, do plausível. Não sou, não quero ser plausível, grita essa região que também já viu, mas esqueceu, foi forçada a esquecer.
Fincado no coração de suas dialéticas racionalistas, o Ocidente, que preferiu eleger para sua tradição a Grécia pós-pré-socráticos, a Grécia lógica, ignora esse jogo.
- Estamos na ilusão, também diria um Heráclito mura.
E essa herança libertária de um filósofo jônico alógico – é preciso exercitar sempre o canibal cultural que preciso ser, diz a região – recusada pelo medo ocidental, nos serve, porque com ela, também, aprendemos a negar a realidade da fatalidade histórica de subnutridos que o Ocidente e sua dominação nos impõem.

Acima foi dito: A minha História amazônica só te­rá realidade quando o meu imaginário amazônico se apossar dela.
O meu imaginário de homem e região.
O que significa isso?
O que seriam homem e região em coito cultural, sendo juntos?
Temos as manifestações de uma arte popular en­tre nós. Frequentemente folclorizada – alienação in­terna da região, alimentada pelo colonizador, frequen­tador de um circo pacífico que ele aplaude para que se mantenha assim – no entanto, creio, é daí que virão as nossas mais decisivas oportunidades de escapar aos rigores e ao vício de uma estética imposta a nós.
Os nossos criadores cultos, repetindo um padrão do Ocidente colonizador, têm se apropriado dessa arte popular para apresentá-la sob a forma de um regionalismo inexpressivo, superficial.
É preciso denunciar essa operação, e insistir em criar meios para que essa arte se expresse por si, para que ela não seja expropriada.
A outra alternativa, a de que homens de cultura busquem a cultura popular e a manifestem em sua própria arte, só pode ser um dado revolucionário quando vier sob essa forma, conforme foi declarada por Glauber Rocha na televisão: - Sou um bárbaro e as minhas raízes são as culturas populares do Terceiro Mundo.
Aqui, procuro um nome numa região similarmente deprimida e asfixiada como a Amazônia. Um nome exemplar. E uma região real e inventada igualmente exemplar.
Falo do Sertão de João Guimarães Rosa.
Não apenas como literatura, mas como espelho válido para todas as nossas linguagens: plásticas, sonoras ou aquelas do silêncio da nossa perplexidade regional, amazônica.
Como nos expressarmos com essa retaguarda de região que somos soterradamente,
com essa retaguarda de oralidades, de lendas, de fábulas que historicamente têm melhor nos expressa­do como região e como sonho de região, como seres humilhados economicamente, politicamente, esteticamente, mas também como seres luminosos, de violenta riqueza vital?
Em sua outra geografia, como nenhum outro, Guimarães Rosa soube fazer o encontro revelador do seu destino individual com o destino da sua região, e, mais ainda, soube transformar esta região numa me­táfora de toda a vida. Nele, em todos os seus livros-salmos, livros-santos, livros-rituais de iniciação na existência, falam mitologias pessoais. E falam também as mitologias da sua região. Nele, Riobaldo é um ho­mem e é os homens, qualquer um de nós e todos nós, e é também Guimarães Rosa. Nesse Guimarães Rosa, o Sertão é um sertão e é mais do que aquela região lá, geograficamente fixada num ponto qualquer da costa do planeta.
Esse tomar-se como indivíduo e ir mais além, para representar a comédia comovente do homem na vida, a comédia comum a todos os homens, homem tornando-se homens para até mesmo expressar me­lhor, de volta à unidade, a condição humana, o real em cada um de nós,
e também esse tomar uma região para expressá-la como uma região específica e ir mais adiante, para fazer essa região valer como uma alegoria do real inteiro, como tem sido vivido da China à África, na Idade Média, hoje ou durante os primeiros clarões da inven­ção do fogo,
essa operação, enfim, de mesclar destino individual e destino coletivo, região e mundo, realidade e imaginário, em demanda do real total, nós não a realizaremos apropriando-nos regionalisticamente da Amazônia. E nem entregando-nos ao modelo de reali­dade imposto a ferro pelo colonizador.
Será, antes, entregando-nos embriagadamente à nossa condição de homens,
digo: de inventores de uma realidade mais vasta,
será falando conforme a loucura que nos seduziu, como queria um insurrecto europeu que lutou contra a Razão do imperialismo, André Breton,
e será, sobretudo, dando-se generosamente à vida, que nós a realizaremos.

Matar o olho culto herdado das tradições da opressão ocidental sobre nós.
Abrir nesta noite regional um outro olho, nativo.
Essas são as práticas urgentes. De uma perspecti­va menos elementar, essa é a nossa fome mais urgen­te.
Contra o colonizador, nacional e estrangeiro, mas sem a miséria da xenofobia rancorosa,
e insistindo nos valores da insolência e da transgressão.
Nosso nascimento como região depende de uma morte? Sim. Da nossa morte como miragem de região.
E, por isso, e para isso,
então,
temos: Posição: contra o regionalismo e ao mes­mo tempo por uma revolução de região, só o mito e o delírio poderão alguma coisa.
E todos os sentidos advertidos contra os engodos de uma História feita contra nós, por dominadores contra dominados.
Para realizarmos essa operação, precisamos aprender a ouvir as falas do inconsciente falante ge­ral, que é de toda a região e de ninguém em particular – abaixo o emblema fixado contra a porta do imaginá­rio amazônico, aquele que diz: "Propriedade Priva­da".
Nesse imaginário, é esta região na verdade quem fala, e, através dela, falaremos todos nós.
Bastará deixar que ele nos diga algo. E escutar. Com muita humildade. Muita radical exasperação também. E sonhando bastante os nossos sonhos, a todo instante. E deixando que esses sonhos, os indivi­duais, se misturem com os sonhos da região. Porque, no fundo, só uma coisa sonha e nos sonha: a Vida.
É preciso dar-se, deliberadamente, a ela.
E é preciso insistir:
Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.


VFC.
Belém, Amazônia, Brasil,
Março/1983









MANIFESTOS CURAU/PARTE III: NO CORAÇÃO DA LUZ










No Coração da Luz/centelhas para um Segundo Manifesto Curau, ou não

Vicente Franz Cecim








- Nossa História só terá realidade
quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor





Assim calava a sua Voz, retornando ao Silêncio que sempre se segue a todas as últimas palavras de tudo que se fala, se escreve, se pensa, também, o primeiro Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite lançado em Belém, no clamor dos debates suscitados pelo Congresso da SBPC/Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1983.
O que restou dele? A invenção de Andara, transfiguração da Amazônia em região-metáfora da vida, seguiu o seu roteiro de viagem sem roteiro à deriva pela vida, passo a passo, através de cada um dos livros visíveis de Andara, enquanto manifestações do não-livro, o que não é escrito: Viagem a Andara oO livro invisível.
Se desde A asa e a serpente, em 1979, foram os primeiros livros de Andara que suscitaram as exigências contidas no Manifesto Curau, e sua incontida manifestação pública, a partir do ano do seu lançamento, em 1983, os demais livros de Andara se dispuseram a realizar essas exigências e a isso vêm se doando, tem sido assim, até a publicação de Ó Serdespanto, em 2001, em Portugal e só em 2006 no Brasil. Até K O escuro da semente, livro visível que também apareceu primeiro em Portugal, em 2005, e até hoje aguarda olhos brasileiros que talvez nem se abram para ele. Mas em 2008 o mais novo Andara, oÓ: Desnutrir a pedra, novamente atravessou esta resistência nacional.

A essência das exigências que fiz a mim mesmo, antes de fazê-las a outros, contidas no primeiro Manifesto, continua intocável: trata-se, ainda, e disso se tratará sempre, da expansão do imaginário amazônico. Tem sido ele, o Imaginário da região, a minha única companhia na solitária aventura estética e espiritual que é a Viagem a Andara, esse percurso claro-escuro entre as coisas que são e as coisas que não-são, que, tendo se iniciado a partir da hipótese Andara=Amazônia, chegou à inversão dessa hipótese originária, e atingiu o ponto, sem retorno, em que já se dá, atualmente, a formulação: Amazônia=Andara. Pois durante a viagem, Andara cresceu, além de si e além de mim, e se expandiu em região-metáfora da vida ela toda, inteira, da terra ao céu, das serpentes às asas mais vastas, para bem além das coisas que a visão humana já não alcança, e apenas pré-sente, se territorializando como Lugar de Todos os Lugares – o que equivalesse a dizer: se desterritorializando em Lugar de Lugar Nenhum - para além da Via Láctea, incluísse outras galáxias, outras hipóteses de Ser, Andrômeda que pacientemente esperará milhões de anos-luz para nos devorar, Suprema Mutação imensa, que não caberá nos limites dos nossos olhos exteriores - certamente, sim – está lá em Silencioso como o Paraíso. E quem sabe isso se dando por conta do alento onipresente e sutil que a ela veio acrescentar o meu filho Franz, que, desde 1993, quando um assassino impune o transformou em homem invisível, seu nome tendo sido incorporado ao meu nome, veio se tornar meu solitário companheiro de viagem: ele Lá, eu ainda aqui, nesse aquizinho de nada
em que sobrevivemos ora sonhando de olhos fechados, ora sonhando de olhos abertos e escrevendo livros.
Andara sendo um território que se doa ao imaginário amazônico e a todos que dele quiserem se apossar, pois lê-se em sua entrada uma inscrição inversa a do Inferno de Dante, que diz: Ó vós que entrais, trazei toda a esperança, Andara, então, se dispondo se entregar desde sempre ao uso comum, coisas curiosas passaram, ainda que muito rarefeitas, a acontecer: - Rafael Costa Costa me pediu um dia permissão para ambientar sua novela infantil em Santa Maria do Grão – essa tosca capital arcaizada de Andara que, em sua vocação de permanência-em-ruínas, de si exclui a face banal efêmera de Belém do Pará. - Jorge Mun se dispôs a por em práticas as exigências do primeiro Manifesto e esboçadas nos primeiros livros de Andara e escreveu Onde, livro delirante que lhe agradou dedicar a mim – e, bem recentemente, eis Nicodemos Sena brincando nos limite do exagero de me transformar em personagem aéreo em seu A noite é dos pássaros, onde declara se inspirar no ideário proposto em Flagrados em delito contra a noite: - Nossa História só terá realidade quando o nosso imaginário a refizer, a nosso favor.

Foram sinais, sinalizações externas, mais de que?
As exigências do Manifesto Curau não sendo somente poéticas, mas também políticas, pois trata-se de uma manifesto poético-político, tantos anos depois ainda somos flagrados em delito contra as nossas noites e os nossos dias, ao constatarmos, hoje, que quase nada realizamos do que aquela Voz faz tanto tempo nos pedia.
O projeto acima citado, certamente utópico – mas no sentido estrito em que essa palavra quer se significar Lugar Nenhum onde, por isso mesmo, cabem Todos os Lugares - de nos apossarmos decididamente da nossa História pelo nosso imaginário de homem & região, conscientes de que toda a nossa força só provirá daí, ainda está muito longe de se tornar realidade, e o que é mais grave: parece até mesmo se afastar cada vez mais de nós.
Fogos mortos, mortais, cada vez mais se acendem na Sagrada & Violada Floresta,
mas não iluminam suficientemente a Face Oculta da nossa consciência regional.
Diante disso, o que resta fazer? Insistir, persistir nas exigências do primeiro Manifesto Curau, tentar fazer com que a sua primitiva Voz ainda ressoe através desta centelha talvez propiciatória a um segundo Manifesto Curau, ou não, e que ela encontre acolhida nos ouvidos das novas gerações e se transfigure em prática cotidiana do ato de sonhar em estado de vigília.
É sobretudo a essas novas gerações, que hoje têm a idade que meu filho Franz tinha quando ainda estava visivelmente entre nós, homens, que cabe soprar apaixonadamente o Real e fazer reacender o Fogo das Cinzas.
A vocês cabe a missão, o passo insurrecto.
Quantos ousarão?
Ou dão o passo em falso que a vida exige de nós, para além ou aquém dos limites que uma civilização
agonizante quer impor ao ser humano, ou só lhes restará fazer a triste opção de se tornarem herdeiros da nossa impotência regional.
Parem um instante as agitações vazias. Olhem ao redor, observem, olhem principalmente dentro de vocês mesmos.
Se instalem, por alguns momentos, entre o vazio que se abria para nós em 1983, ano em que muitos de vocês nasceriam, e o vazio que perdura neste ano de 2009, quando o Manifesto Curau se atira novamente ao mundo gritando suas denúncias, pregando a sua fé.

Se vocês pararem realmente para observar,





não como habitualmente: o Céu da Terra,

mas insolitamente: a Terra do Céu,

*




verão que a Amazônia, apesar de seus torturadores & de seus filhos indiferentes, ainda é o espaço que, aqui embaixo, enquanto todos dormimos os nossos sonos alienados, reflete & dialoga com as estrelas
e, mais atrás delas, com o Oculto Negror de Onde emana toda a luz.
Nos recusemos às Cinzas.
Cintilemos.
Tentemos, ainda uma vez, permanecer no lugar mágico em que a vida nos lançou.
Nós ainda estamos pulsando no Coração da Luz.


VFC
Belém, Amazônia, Brasil
Março/2003




* Stoltius von Stolcenberg: Viridarium chymicum, Frankfurt, 1624




















VICENTE FRANZ CECIM



VIAGEM A ANDARA oO LIVRO INVISÍVEL



BIOBIBLIOGRAFIA





Nasceu na Amazônia, em Belém do Pará, no Brasil. No caldeirão de uma escritura em liberdade, a literatura como alquimia abole as fronteiras entre a prosa e a poesia, funde o natural e o sobrenatural, o profano ao sagrado, e se lança em intensa b

usca do sentido metafísico do ser e da vida. Em 1979, com A asa e a serpente, iniciou uma longa obra que até hoje continua criando: Viagem a Andara oO livro invisível, em que transfigura a sua região natural, a Amazônia, em Andara: uma região-metáfora da vida em que o sobrenatural emerge em epifania. É onde ambienta todos os seus livros.
Andara sendo a Amazônia vista com olhos mágicos, como já foi dito, também é literatura fantástica, mas à medida que individualmente os livros visíveis de Andara vão sendo escritos, deles surge o livro invisível, que já é literatura fantasma, segundo o autor, o não-livro, que não é escrito: corpo de um corpo que se sonha. Em 1980, o segundo livro individual de Andara, Os animais da terra, recebeu o Prêmio Revelação de Autor da Apca – Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1981, A noite do Curau, primeira versão do terceiro livro de Andara, Os jardins e a noite, recebeu Menção Especial no Prêmio Plural, no México. Em 1988, Viagem a Andara, o livro invisível (Editora Iluminuras, São Paulo) reunindo os 7 primeiros livros de Andara recebeu o Grande Prêmio da Crítica da Apca. Em 1995, Cecim publicou Silencioso como o Paraíso (Iluminuras, São Paulo) reunindo mais 4 livros individuais de Andara. Em 2001, quando a invenção de Andara completou 22 anos, publicou Ó Serdespanto (Íman Edições, Lisboa) com 2 novos livros de Andara, apontado pela crítica portuguesa como um dos melhores livros do ano. Em 2004 relançou, em versões finais, transcriadas, os 7 primeiros livros de Andara reunidos nos volumes A asa e a serpente e Terra da sombra e do não (Editora Cejup, Belém). Em novembro de 2005, publicou seu primeiro livro em Iconescritura, também em Portugal: K O escuro da semente(Ver o Verso, Maia). Em 2006, saiu a edição nacional de Ó Serdespanto (Bertrand Brasil, Rio). Por ocasião da publicação dos seus primeiros livros, o autor declarou: Prefiro interrogar os limites e a existência da própria literatura. E insinuar, para além da literatura fantástica, o advento de uma literatura fantasma. E, em recente entrevista, disse: O natural é sobrenatural, o sobrenatural é natural. Foi o que o Andara me revelou. Já não faço Literatura: faço Escritura. Dos passos mais recentes do autor através de Andara, atravessando através da carência das palavras que o levou a eleger a forma híbrida de escritura e imagem, que denominou Iconescritura, resultaram também os livros oÓ: Desnutrir a pedra, lançado pela Tessitura em 2008, e o inédito Breve é a febre da terra.