18 de junho de 2009

ENTREVISTA Vicente Franz Cecim: Vento de Vento


Por Rita de Cássia



















Rita de Cássia
Como é o seu processo de criação? Que grau de consciência e inconsciência existe nele?



Vicente Franz Cecim: Consciência e inconsciência são camadas de uma coisa só – nuances do Ser se manifestando no Ente. – Oh, não voltemos a falar do umanoH, fiquemos só nestes limites. – Então, se eu sou o Criador, então eu estou provavelmente todo o tempo consciente. Mas se eu for somente o Instrumento para que uma criação se realize através de mim, então eu deveria estar em transe, ou inconsciente — não parece razoável ver as coisas assim? Mas no meu caso é um Transe em que inconsciente e consciente se enlaçam, se tornam uma coisa só. E eu me torno essa coisa só, toda unida a si mesma. Parece um estado xamânico – você não quer ler a descrição que Mircea Eliade — o amigo de Cioran — faz disso? Estou em mim, e não estou. Estou Lá, mas é uma Lá que é Aqui, e vice-versa. Posso começar um livro de Andara – ou melhor: deixar que ele se comece em mim – por uma frase, uma imagem, um sentimento, uma percepção lampejante, enfim, por coisas que me chamam de dentro de mim ou de fora de mim. Às vezes começo um livro pelo fim, outras pelo começo, outras por coisas que estão no meio, no transcurso por onde os olhos do leitor irá passar, transcurso esse que eu ainda nem sei qual seja, não sei. Eu me entrego, eu sou levado. Mas, o curioso: eu sou levado como se O Que me leva soubesse do que eu preciso, o que eu, enquanto homem, busco. – O umanoH? – Psiu, silêncio. — Então é um estado excepcional que me acolhe com absoluta cumplicidade. Nem sempre. Às vezes me nega, renega. Devo ter paciência: saber que eu sou menos e que ele: Ele, esse estado Obscuro-Translúcido, é sempre Mais. Seria esse o Estado Lírico de um criador?



Rita de Cácia:
Você gosta de poesia? Que tipo de poesia?



Vicente Franz Cecim: Uns escrevem uma coisa no formato de um poema e pensam que fizeram poesia. Não é isso. Poesia não tem Forma, e se tiver, não uma forma pré-definida. Toda forma é pré-definida? Uma coisa chamada Poesia nasce com a gente, e está em tudo o que vive e morre em nós e diante de nós. Poesia. Parece um sonhar mais profundo dentro do Sonho de Já Sermos. Vallejo, Rimbaud, Lautréamont, Hoelderlin, Novalis, Pessoa, Whitman, Saint-John Perse, Eliot, Rilke, Emily Dickinson. Nomes remotos. Há outros.



Rita de Cácia:
Você escreve prosa ou poesia? Penso que sua prosa seja prosa poética. Há acerto nisso?



Vicente Franz Cecim: Não. Nem prosa nem poesia e ainda menos prosa poética – que não sei nem o que é, e me parece mais uma facilidade para explicar uma coisa que não se sabe como explicar ou definir. Feliz ou infelizmente, é assim. Fugindo dos gêneros, me achei sozinho em um, digamos: Universo Verbal que tudo permite e torna possível. Comecei fazendo ainda a Literatura, mas, asfixiado, passei a fazer puramente Escritura, livremente, e quando as palavras se tornaram rarefeitas e não queria dizer mais quase nada, cheguei a uma forma de expressão que chamei de Iconescritura – os últimos livros visíveis de Andara foram criados assim, como iconescrituras: K O escuro da semente (Ver O Verso, Portugal, 2005) e os inéditos Breve é a febre da terra e também óÓ: Desnutrir a pedra. Tive de retornar à antes da invenção do Alfabeto pelos Fenícios, cerca de 6 mil anos, para reencontrar a Imagem em estado puro, as matrizes da futura Palavra escrita.



Rita de Cácia:
Para ler suas narrativas é preciso um certo grau de conhecimento filosófico, um conhecimento da vida, uma certa visão da Amazônia, enfim, um conjunto de conhecimentos, o que, em geral, os jovens ainda não têm. De que forma você pode contribuir para a formação de leitores?



Vicente Franz Cecim: Eu não gostaria de formar leitores, nem de formar pessoas de um modo geral: cada um seja o seu Ser Original e estará devidamente formado por si mesmo. Assim, aponto vagamente caminhos, somente, esboços, sem muito peso e densidade — como aquele dedo que aponta a Lua Zen, de Dögen. Alguns olharão para o dedo que aponta, outros para a Lua no céu — muitos poucos sentirão a Vertigem, perceberão o fantasma: — Ver a Lua refletida numa gota de orvalho.



Rita de Cácia:
Qual o caminho capaz de facilitar os jovens a terem acesso ao trabalho literário?



Vicente Franz Cecim: Dêem a eles livros para ler, muitos livros, livros à vontade – estimulem a convivência deles com os livros: que durmam abraçados com os livros em suas camas, redes, ninhos, que aprendem a conversar com um livro como a pessoa que o livro, realmente, é, a pessoa que ele, livro, sustenta e traz em si, e que é mais do que um autor, só um nome: deixem que saiam para passear e conversar um dia com uma pessoa chamada Schopenhauer, uma tarde com outra chamada Plotino, certa noite com outra chamada Rumi, que conversem com esses homens – homens e mulheres que são os seus livros – e não pensem mais que um livro é somente um livro, um objeto, um objeto-livro, porque a verdade é que todo Livro que merece ser lido é, tem e contém a vida de quem o escreveu. Nessa Convivência, se abrem os Caminhos. E se aprende qual livro é uma má ou uma boa companhia.



Rita de Cácia:
Como levar os jovens a refletir, ‘sem apenas ler as letrinhas’, uma vez que, a mídia os leva para uma formação medíocre? Quais eram suas leituras na adolescência?



Vicente Franz Cecim: A mídia moderna é um veneno, mortal para os Sentidos, a televisão é a morte dos olhos, a imprensa é uma surda mensageira de mensagens convenientes para os que estão no poder – e o Poder é podre, não pode ser outra coisa, acaba aprisionando e roubando a liberdade daquele mesmo que o exerce — baste ler Shakespeare — como poderá libertar os outros? Em vez do poder: generosidade, em vez da ordem: a cumplicidade. Minha mãe tinha uma pequena biblioteca em casa, li tudo, por volta dos meus treze a quatorze e quinze anos. Lia por ler, pelo sabor de ler – e ia entendendo que ler é viagem, e viajava, lendo tudo. Descobri a literatura de ficção científica, ou chamada de antecipação, a de mistérios, a de aventuras. Lembro um ano em que li todo aquele que me pareceu infindavelmente longo Ivanhoé, de Walter Scoth, durante um mês inteiro, de férias. Mas lembro bem mais quando e qual foi o primeiro escritor que realmente foi para mim um Criador e que amei instantaneamente e ainda amo: Knut Hansum, o dinamarquês. Seu livro mais famoso é Os frutos da terra, deram a ele o prêmio Nobel, mas depois da Segunda Guerra o internaram num hospício, por ressentimentos: nesse hospício, muito lúcido, ele escreveu suas últimas e algumas das melhores obras. Se foi de estar aqui por volta dos 90 anos. Troquei o dinheiro que tinha para uma passagem de ônibus pelo Hansum, com um sapateiro que vendia livros usados. E fui para casa a pé, andando nas nuvens.



Rita de Cácia
Você é considerado pela crítica um escritor universal, o que apresenta todos os gêneros. Ratifico essa que aborda desde o processo cíclico da vida, até uma literatura onírica, e tudo isso se escriturando de uma maneira altamente sensível, o que explica a citação de Jakobson “Essas palavras são ditas com espontaneidade, palavras translúcidas; é um arrebatamento da alma” corroborando com a citação do escritor Emil Staiger que afirma: “O lírico, na forma adjetiva, é visto como um estado de alma, uma disposição sentimental, exprimido por meio de palavras, (...) aparentemente sem nexo lógico”. É uma das marcas que me levaram a caracterizar O sereno uma narrativa lírica. O que você pensa a respeito de enquadrar sua obra O sereno na forma do gênero lírico?



Vicente Franz Cecim: Não, evitemos isso: cuidado com as palavras: a palavra enquadrar é uma antipalavra: a Palavra que vale não se enquadra, ela é Vento de Vento, como diz Coélet no Eclesiastes, se bem traduzido: sim, mas a Palavra que realmente nos fala também é o Verbo gerador: ele abre, amplia, cria – não reduz – não enquadra. Então, não vamos fazer isso com um livro que foi todo sonhado, este O sereno, que transbordou de si mesmo e se lançou para além de todas as margens. Embora se passe, ele todo, numa única noite, numa margem, numa praia, diante da Água primordial. Não me desagrada que O sereno seja lido como um livro lírico, não me incomoda que nenhum dos livros de Andara sejam lidos também assim. Concordo com a frase citada de Jakobson. Me vejo imerso nela. Mas não sei se Andara se resume a ser lida como literatura lírica. Somente na hipótese de se vincular o Lírico ao Sublime. O Sublime, como o: Absolutamente Sem Fronteiras discerníveis. A citação acima que diz “aparentemente sem nexo lógico” é engraçada. Ela parece querer se desculpar, em nome do lirismo, por ele não mostrar um nexo lógico explícito. Não sei. Atualmente — se querendo ainda falar em Lógica mantendo o mesmo espírito de transcendência do que restou do Logos grego, do Logos como uma Manifestação do Sagrado, e no sentido do Uno de Plotino — acho que se deveria falar da lógica íntima do Caos, que nos gerou e que ainda nos é a Grande Desconhecida, porque Dela temos muito Medo – esse Kaos criador que contém um subsolo e um Centro, não-superficial, e que não se submete a uma mera ordenação superficial pelo temor humano – veja o dístico positivista Ordem e Progresso, que persiste, mas não se realiza, em nossa bandeira. O Caos originário criador, seja ele algo realmente centrado em si, em Sua Imanência, e todos os nexos possíveis entre as coisas manifestas, as Visíveis, deverão ser percebidos nascendo dele. Mas só quando não o temermos mais. Quando entendermos e aceitarmos o quanto de Invisível contém o Visível.




Rita de Cácia
Um aparte, ou melhor, uma audácia. Você se considera um ser solitário?


Vicente Franz Cecim: Sim, um Solitário. De uma certa maneira nós todos somos. As ligações, as relações que se estabelecem por fora, no Exterior, são insuficientes para serem aceitas como O suficiente, pelo Ser. Mas já falamos disso: no fundo da Originalidade de cada um de nós, é onde nos encontramos, e cessam todas as solidões individuais. Imagino a Alegria transbordante de um encontro entre aqueles que não eu quis separar: Kafka, Beckett, Gombrowicz, Rulfo, Guimarães Rosa, Bruno Schulz, Giono, Cervantes, Swift – uma Alegria comum a todos, pois, todos, unidos por suas originalidades pessoais.



Rita de Cácia
Você parece ter um corpo e duas almas. Você sugou a alma de alguém?



Vicente Franz Cecim: Um corpo e duas almas? Isso é interessante. Eu diria que uma delas é realmente a Alma, e a outra o Corpo, mas um corpo que se quer também Alma.



Rita de Cácia
Suas narrativas podem ser comparadas às peças de piano tocadas a quatro mãos, sem perder, claro, a unicidade e a harmonia. Como o homem Vicente Franz Cecim domina o escritor para que o processo artístico vingue dessa forma tão singular e espontânea?



Vicente Franz Cecim: O xamã se manifesta no homem, e, então, tudo se revela em Sonhos e tudo é vivido como o Sonho que no fundo é? Exercito normalmente essa espontaneidade em tudo, através dos dias mais comuns da minha vida. As palavras chaves aqui, são: Sinceridade e Inocência. Fora disso, o contra-fluxo é brutal. Parece uma vertigem invisível.



Rita de Cácia
A escritora e professora de literatura Walkyria das Mercês diz que sua prosa é um poema lírico esparramado.O que você pode dizer a respeito desse parecer?



Vicente Franz Cecim: Pode ser, assim pode ser: não prosa poética, mas “prosa que é um poema lírico todo de si derramado”. Ou como se diz em Andara: - O Vazio que transborda.



Rita de Cácia
Às vezes, Vicente Franz Cecim mostra-se personagem de si mesmo. Um ser transfigurado em arte. Até os seus dedos já se ampliaram e compõem com o cigarro uma outra forma de mão. Há limites entre homem e escritor? Penso que não.



Vicente Franz Cecim: Há uma distância imensa que vai da pata à mão humana. Mas para quê? Grande ato falho do homem consigo mesmo, isso de fumar. Comecei sem querer, e agora, por querer, parei. Estava morrendo para a morte. Agora vivo para a vida. Sartre, em O Ser e o Nada, diz que fumar é sublimar a vida. Pode ser, poeticamente, até ontologicamente, quem sabe, sim. Mas esse sublimar a vida, queimando, reduzindo a cinzas – o que é? Essa Negação? Será essa necessariamente a via por onde se atingirá o Sublime? Pela Dor? O Sublime não é um devaneio, é o mais alto grau da responsabilidade humana. É o que Busca o humano. Mesmo através das cinzas, tem que ser tocado, atravessando a Espessura da existência manifesta, a Visível. O homem se salva de dois modos: ou no mais Comum, ou no Sublime. Não vejo outra saída, ou outra Realidade no Sonho de Sermos.



Rita de Cácia
Fim.



Vicente Franz Cecim: Poderia ser um Fim, sim. Mas ainda não. Nesta re-visão, agora eu balbucio este adendo e prefiro terminar num começo: de algo um tanto surpreendente, que me cabe tão claramente o quanto ainda não O Sei. Estranhos rumores, coisas se movem. Talvez não devamos mais continuar nos distraindo com fantasmagorias como o Homem, o Ente, o Ser, o Não-Ser. Comecei a suspeitar disso desde que através de Andara me ocorreu a hipótese-clarão do que veio se apresentar como — o Humano — na linguagem de Andara, chamo a isso de: o umanoH — que é o que cria e é e não-é Tudo isso. E o Nada de que todo esse Isso é feito. Concebido. Engendrado. Pense tentando resistir à Vertigem: — É esse umanoH que, sem conflito algum, concebe as realidades de Homem, de Ente, de Ser e Não-Ser. Nenhuma dessas realidades consegue conceber inteiramente o Humano – ou o Andara umanoh – sem conflito com as outras. A progressão, ou regressão, homem-ente-ser parece ser sempre implicadamente ex-cludente. E quanto ao ser ou não-ser? O primeiro cogita o segundo, que o ignora inteiramente. Mas o Humano – o umanoh – inclui os dois – como se fossem Um ou Nenhum. Tanto fez, tanto faz. — Que extraordinária libertação nos vem desse entendimento umanoH. Dele, eu digo como o omem de areia no mais recente livro visível de Andara: - O Mel é beber a vida em sonhos.