25 de maio de 2010

Barroco Infinito

Vicente Franz Cecim











O movimento de um corpo não engendra um corpo, mas uma sombra. A propagação de um som não engendra um som, mas um eco. A ação de um inexistente não engendra um inexistente, mas um existente

Lié Tsé
Tratado do Vazio Perfeito
China, Século IX AC



Já é tempo do Pensamento, por sua vocação à autoSufocação, e cada vez mais asfixiado pelo Conhecimento acumulado e amestrado pela Cultura, deixar livre, de uma vez por todas, as Obras de Criação. Para a Arte livremente se deixar penetrar por visitantes não especializados, e a Maneira desse Encontro se tornar uma mais Íntima convivência.
Se sabe: aquilo que a Razão conhece, ela afasta de si, exila como Outro. Nasce o Eu & Tu, que não é sequer nós. Plotino e o Zen nos ensinam isso.
A Razão é sempre igual a si: um Mesmo que a tudo exclui.
Não é o acesso natural à Obra, que tem a vocação oposta da autoDoação.
A Razão ergue sua Muralha duplamente, uma delas diante de si mesma.
A outra: tendo se apossado da Obra, aprisionada em suas tramas lógicas retas e lineares – ó aranha calculista, com Face humana e Dedos antiHumanos – com a Autoridade autoJustificada que se consente, volta essa Muralha, resistente embora em Ruínas, contra o visitante desprevenido.
E assim é possível permanecer imobilizado diante de uma Obra de Arte do nascimento à morte, sem Nela jamais penetrar.
Como o paciente Homem Inocente de Kafka diante da Porta da Lei.
Morri pela Beleza, diz o Poema de Emily Dickinson, quando alguém que morrera pela Verdade foi depositado na terra ao meu lado.
Esse Diálogo que se aspira sem fim, até que silêncio e limo venham cobrir nossos lábios, é o Risco do artista que se quer livre para poder gerar obras livres.
Seu Legado Libertário.
















É este o Acesso que buscamos para o Barroco Infinito, encenado & exposto por Armando Sobral.
Mas na própria Obra esse acesso se evidencia, logo em sua entrada, à direita, por um Manto pendente vazio de Corpo em suas dobras.
Para onde foi esse Corpo Nu que estava aqui, ou nunca esteve, e de qualquer modo se despiu? Está em todo o Ar do Espaço da exposição, confundido com as Sombras que os Objetos dela projetam, fundido com as Luzes que os iluminam.
Manto Barroco. Sem dúvida: suas dobras provêm da evocação de algum Santo de remotas catedrais.
Deixemos esses panos abandonados e sigamos os rastros invisíveis no Ar, do Corpo Nu, que penetrou, antes de nós, na própria Obra de que faz parte, e nela nos espera.
Já se percebeu que o convite deste Corpo sem corpo não é convite a uma mera visitação impessoal, neutra, a este espaço habitado por coisas. E ainda que fosse, não pode ser. Porque também nos sugam e fazem penetrar nesse ambiente as tábuas do assoalho, de um outro jogo de Xadrez, em preto e branco, linear, paralelo, que mergulham obra Adentro e sob os nossos pés.
E ao primeiro passo, todo o chão como que se inclina para uma Perspectiva que se estreita como Via para o Sem Fim – revelando e alegrando as limitações gloriosas do olhar humano: Farsa que lhe permite ver além de si, ver o que não o vê, íntima aliada dos olhos quando fechados sonham.
Se seduzido por essa promessa de Infinito lá no fim, que na verdade é uma parede, mas não o Muro da Razão, a poucos passos – mas isso para o Viajante da Miragem já pouca importa – o visitante penetra nesse Espaço, Barroco – mas inesperadamente despido de Espessuras e Convivências Amontoadas,
Porque aqui, este Barroco do Século XXI, todo flutua com uma despojada Leveza, seus Enigmas são fluídicos, e penetramos em um Claro Labirinto.
Onde o nosso próprio corpo se tornou leve e flui, entre Luzes & Sombras, como Ícaro experimentando a Leveza do Ar antes da Queda.
Curiosa Vivência: uma vez Dentro deste Barroco Infinito, nele Imersos, somos ao mesmo tempo Presença & Ausência.
Mérito de sua Tenuidade.
Visitantes assim também visitados.
Já não mais os antigos visitantes das Sés e sua Densidade Porosa,
seus Rostos de Pedra que nos vêem sem ver passar, sem participar da nossa cotidianidade.
Nos objetivamos na intimidade dos seus Objetos sem rostos, vagando por entre eles e os vazios que em seus intervalos nos concedem, lançados aqui e ali: Objetos ofertórios, dádivas contidas, erguidas espiritualmente em oferenda acima de patas, altares de sacrifícios, e também suas bases que não são mais grandiosos pilares mas quase móveis domésticos do dia a dia.
Enquanto eles, esses Objetos, por sua se subjetivam em nós.
E nessa Intimidade, ontologicamente Nós & Eles fenomenologicamente, nos celebramos, celebramos o nosso Encontro.
O Espaço, onde costumavam se encontrar superficialmente Homens & Coisas se converteu num Abismo, onde uns nos outros nos resvalamos, e onde realizados o que parecia impossível: nos tornamos Parentes.
É possível ouvir Murmúrios no Ar silencioso. Porque aqui tudo reina em Presenças & Ausências.
Presença pela Imersão do humano: porque estamos Dentro da Obra. A Vivendo.
Ausência porque, estando Nela, também estamos Fora e Diante dEla. A Contemplando.
Como os espreitadores do Decorrer do Tempo e da Fugacidade ante a imobilidade de um Jardim Zen.
Eis: um Ideal, que toda Obra de Arte devesse nos ofertar: sermos, no Uno que sempre somos, dois: aquele que a Vive & aquele que a Testemunha. No mesmo tempoespaço.

Lembremos:
Um Manto nos deu acesso, no rastro de um Corpo. Nu dele libertado. Nosso Guia.
E aonde nós nos levamos – Homem, Vivenciador, Testemunha – através desses Ares, desse Espaço Vazio cheio de objetos rarefeitamente nele semeados?
Esses Objetos que por sua nos Testemunham & conosco Convivem?
Deslizando pelas tábuas – um pé pisando madeira escura, o outro pisando madeira clara – em direção à parede do Fundo e à Promessa de Infinito com que a falsidade da Perspectiva nos alegra os olhos exaustos de ver o Visível Tangível,
e indo em demanda do Corpo oniausente que se livrou do Manto Inicial,
então,
toda a Presença da Matéria nos desvia para a esquerda, na forma de um Coração Vermelho,















que cravado na parede lateral – aberto Clarão de Sangue – nos recupera para o Barroso arcaico, aquele das Catedrais,
dos Santos Sangrantes,
e sua Mística Medieval, ocidental, cristã.

Recupera?

Também na porta de saída da Obra, como em sua entrada, já não há guardiões.
E somos homens livres,
e dali saímos acompanhados por objetos livres


Que bela Procissão de Sonhos: Homem & Coisa se dirigem, após a Travessia deste Barroco Infinito, enlevecido, à Origem como a tudo que, no Todo,
É & Não é

Assim: - Menos Mais sendo




Vicente Franz Cecim é autor de Viagem a Andara oO livro invisível, dos filmes KinemAndara e das MusikAndara.